Virgínia
Fontes
A
História está de luto: a história do Brasil, a história no Brasil, a história
antiga, a história contemporânea, a história que produzimos em cada dia na vida
social, a história refletida e pensada por alguns historiadores, a história que
se faz nas ruas, a história comprometida com a luta social e com uma reflexão
aguda e crítica. Perdemos há 15 dias, no dia 29 de junho de 2013 um dos nossos
maiores historiadores, Ciro Flamarion Santana Cardoso.
Raros
intelectuais tiveram uma vida como a de Ciro, totalmente dedicada à pesquisa e
à docência. Leitor voraz, professor em tempo integral, dedicadíssimo aos cursos
e à tarefa dupla e complexa de produzir e socializar conhecimento. Muitos
desses cursos, aliás, se tornaram livros. Ciro preparava suas aulas meticulosa
e minuciosamente, de tal maneira que os alunos dispunham de textos originais
altamente qualificados sobre o tema trabalhado. E isso não apenas em cursos de
mestrado ou doutorado, pois Ciro era rigoroso e generoso em todas as aulas que
dava, sobretudo na graduação de História, onde atuou durante muitos anos. Não
escondia seus novos textos: eles integravam plenamente sua vida docente, sua
relação com os alunos, com seus colegas e com o mundo dos historiadores.
Numa
época em que a pressão pela quantidade desdenha a qualidade e impede a reflexão
crítica, Ciro nos ensinou a necessária dialética entre quantidade e qualidade:
realizou uma produção de enormes dimensões, sempre com altíssimo nível de
elaboração. Tendo como característica pessoal o profissionalismo e uma enorme
exigência de qualidade, Ciro Flamarion não engrossou o coro dos que aderiram a
uma história convertida em turismo temporal, em repositório de curiosidades ou
descompromissada, na trilha de um mercado que tendeu a esvaziar a reflexão
histórica de seus maiores desafios. Navegou na contramão da
hiper-especialização e se dedicou a fundo a múltiplas questões, ultrapassando
na prática as cercas que instauram quase cinturões de propriedade para certos
temas ou períodos históricos.
Jamais
atacou novidades, mas criticava duramente os novidadeiros, aqueles que
enveredavam pelo primeiro caminho da última moda e, com o afinco dos
recém-conversos, orgulham-se de desconhecer completamente o árduo percurso
prévio, desqualificando-o de antemão. O meio historiador é sacudido de tempos
em tempos por alguma moda que, como incêndio em pradaria, parece garantir um
lugar ao sol para os mais rápidos aderentes. Para os que não sabem, o âmbito
dos historiadores é uma área bastante competitiva em termos de carreira e de
reconhecimento, e tais novidades, em geral aportadas do exterior por mãos bem
treinadas, tornam-se rapidamente jargão repetido, até seu completo esgotamento.
Entre o início gritante e a decadência silenciosa há tempo para consolidar
algumas carreiras.
O mundinho
dos historiadores, como em qualquer disciplina, convive com diferenças e
divergências e elas são – ou deveriam ser – algo de corriqueiro. Como lembra
Pierre Bourdieu – de quem Ciro Flamarion, aliás, não foi um adepto – a
principal linha de fratura entre as ciências sociais é a que separa os que
consideram que a sociedade é cindida em classes e os que consideram essa cisão
inexistente. A mera adesão a um dos lados dessa permanente luta não garante por
si só um trabalho de pesquisa melhor, mas define lados em permanente conflito,
dentro e fora das universidades. O abandono das chamadas “grandes teorias”, que
partem das grandes fraturas sociais estruturais – e suas razões – tende a gerar
textos menos comprometidos com as questões sociais cruciais. Por vezes, gera
pesquisas refinadas, de longo fôlego, com profundas marcas de erudição. Mas
exatamente pelo aparente desinteresse e descompromisso com a luta que atravessa
a vida social e demarca o próprio campo científico, também abre a brecha para
que o compromisso se limite aos valores de troca dominantes, ou seja, o mercado
(mercado editorial, mídia, etc.) e com seu equivalente interno ao campo, o
“mercado do reconhecimento inter-pares” (publicações, viagens, convites,
bolsas, etc.). Ciro tinha posição, não perseguia seus opositores e, ao
contrário, abria intensos e fecundos debates. Não se pode dizer o mesmo com
relação a muitas outras tendências teóricas que eliminam sem escrúpulos
qualquer odor de marxismo, mesmo se discreto...
Essa
postura de Ciro Flamarion se refletia também na sua atuação institucional.
Defendendo uma profissão historiadora na qual seus trabalhadores sejam
dignamente remunerados e tenham acesso pleno às condições de trabalho, ele
procurou sempre estabelecer parâmetros igualitários para que isso pudesse
ocorrer, refutando as propostas que, apoiadas imediatamente pelos mais rápidos
e preocupados apenas consigo mesmos, desconsideram a necessidade de elaborar
projetos coletivos, de assegurar direitos a todos. Participei de várias
comissões na UFF juntamente com Ciro Flamarion e muito aprendi: não se tratava
apenas de premiar os mais aptos, como muitas vezes era imposto tanto de cima
para baixo, quanto ecoava nos corredores universitários em lutas intestinas
ferrenhas. Admitia a existência de bons trabalhos em qualquer área teórica, mas
não da forma apressada e exacerbadamente competitiva como alguns queriam.
Envolvia considerar o conjunto das atividades docentes (ensino, pesquisa,
extensão), e não apenas um parâmetro exclusivo, imediatamente mensurável.
Ciro
defendia o estabelecimento de verdadeiras políticas, com a definição de
critérios comuns, dignos e abertos, para que todos pudessem atingir a formação
necessária, garantir uma docência de alto nível e realizar uma produção
bibliográfica condizente. É preciso lembrar que, sob qualquer critério, Ciro
Flamarion era sempre o mais produtivo. Jamais aceitou privilégios ou exigiu
tratamento diferenciado – ao contrário, exercitou na prática de sua própria
existência os critérios que defendia. Foi uma pessoa rara.
Se Ciro
tinha clareza do lado em que estava nesse complexo conflito que atravessa nossa
vida social e o mundo dos historiadores, sua principal atuação política ocorria
no cotidiano do trabalho docente e intelectual. Era um leitor atento e arguto
de todas as tendências historiográficas e teóricas e nunca se limitou a estudar
apenas autores de sua própria convicção. Por isso, como apenas grandes
pensadores e exímios profissionais são capazes, Ciro não só cultivou como afiou
o viés crítico e o debate teórico permanente, sólido e rigoroso, enfrentando um
a um todos os autores e modismos que se abateram sobre a história e nunca o fez
de maneira aligeirada. Procurava compreender o que de fato havia de novo,
descartar o efêmero e enfrentar os verdadeiros problemas intelectuais, teóricos
e historiográficos, sem perder de vista que ser historiador não deve ser nem
uma carreira burocrática nem uma louca corrida pelos lucros mercantis: ser
historiador envolve enorme compromisso com a emancipação humana em todos os
âmbitos da existência, o que envolve a capacidade de pensar crítica e
livremente e a exigência da produção de relações humanas pautadas na igualdade
social.
Enfrentou
claramente os modismos, sempre produzindo sólidos artigos combatentes, que
nunca se limitaram a comentários passageiros, ajudando a consolidar uma
tradição historiadora crítica e exigente. Como raros, Ciro Flamarion sabia que
não era o período estudado o que definia a contribuição dos historiadores, mas
a questão enfrentada, assim como a forma de abordá-la; era a interrogação que
presidia a pesquisa, gestada a partir de uma densa básica teórica e de profundo
estudo historiográfico, quem abria a possibilidade do novo. E o novo, na
maioria dos casos em que é fundamental, não é novidadeiro.
Ciro
Flamarion foi um intelectual marxista em sentido pleno: era um estudioso da
teoria, um pesquisador no âmbito do empírico, do teórico e do historiográfico,
um elaborador de profundas reflexões históricas, teóricas e metodológicas. Não
era um marxista de circunstância e, por conhecer a fundo as múltiplas teorias
históricas, sabia pertinentemente que nenhum outro ambiente teórico abria
tantas possibilidades de explicação e de compreensão do mundo, em diversas
áreas do conhecimento. Melhor do que ninguém, Ciro sabia que a história é um
processo complexo e que descortinar as grandes contradições e questões, tarefa
central dos historiadores, é uma das condições da luta social. Desconhecer a
causa teórica que Ciro abraçou toda a sua vida falsifica sua biografia e sua
coerência como historiador, como professor e como pessoa.
Além do
historiador, do intelectual marxista e combativo, perdemos um homem raro. Ciro
foi um homem de uma cultura e erudição raras, que gostava e conhecia bem
literatura (ele adorava ficção científica), música, cinema, ópera, gastronomia.
De enorme sensibilidade, lembro-me de pequeno episódio que me impactou.
Almoçávamos juntos, como fizemos algumas vezes, e conversávamos sobre
literatura. Ele comentou que havia relido o conto – integral – de Andersen, A
pequena sereia. Comentei que esse conto marcara enormemente minha infância. A
sereiazinha, para adequar-se a um ser humano por quem se apaixonara, aceita uma
vida inteira de enormes sacrifícios. Ela deveria ser amada por ele e, ainda
assim, caminharia sobre agulhas. Se o amor dele lhe faltasse, ela se
converteria em espuma do mar. Lembro-me, criança, de me deparar com o sentido
da injustiça. Mais tarde vim a perceber que o conto traduzia para mim, de
maneira refinada e extremamente dolorosa, o percurso socialmente sugerido para
as mulheres. Ciro estava com os olhos cheios d'água e comentou que a cada vez
que lia ou pensava nesse conto, ficava embargado de emoção.
Ciro
gostava de boas coisas. Gourmet (conhecedor de gastronomia) mas, sobretudo
gourmand (guloso), trocava receitas e dicas de culinária e de vinhos;
reconhecia uma cantora de ópera, ouvindo a melodia que tocava em minha casa,
através do telefone no qual falávamos. Gostava de uma boa conversa. Quando vivi
no exterior, era uma honra e uma felicidade receber suas cartas, pois nelas
reencontrava Ciro Flamarion na íntegra: suas cartas me explicavam a situação
brasileira, as condições da universidade, os grandes temas então em voga por
aqui, me traziam suas novas pesquisas e suas interrogações.
Este
homem enfrentou, com um senso de humor e uma leveza por vezes até
desconcertantes, enormes desafios de saúde. Apesar do desconforto de muitas das
operações a que foi submetido e que afinal resultaram na perda da visão de um
dos olhos, Ciro ficou pouquíssimo tempo afastado das salas de aula. Suas
licenças médicas duravam o tempo mínimo necessário para o restabelecimento e a
convalescença ocorria em paralelo à sua plena atividade docente. Não se
queixava e, ao contrário, fazia piadas e brincadeiras com o seu sofrimento.
Dizia, por exemplo, que havia se tornado, de fato, um semiótico... Fui
visitá-lo após uma dessas cirurgias e ele, mal conseguindo falar, me fazia rir.
Tive a
sorte de conviver com Ciro como colega de Departamento, como mestre e como
amigo, com a proximidade possível com um intelectual daquele porte. Sua perda é
enorme para todos os que têm um sentido de profundo compromisso com a história
que se vive, com a que procuramos construir e com a história que precisamos
escrever. Ciro, você faz muita falta.
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