
Jair Pinheiro*
A preocupação com avaliar processos e produtos
se generalizou. Não se discute mais a avaliação (às vezes se encena discuti-la
para reiterar mais do mesmo), apenas seus aspectos, digamos, laterais relativos
à Regulamentação e ao sistema de avaliação, entendido como composição do órgão
avaliador, sua relação (autonomia e subordinação) com as instâncias da
instituição onde ocorre a avaliação e, quanto ao objeto avaliado, instrumento
de coleta de dados, itens a serem avaliados, relação entre eles, escala de
pontuação e, com base nisso, atribuição de mérito e prestígio em forma pecuniária,
posição institucional, honrarias etc.
Tal sistema visa aferir o mérito. Do ponto de
vista ideológico, tornou-se impossível discordar (pelo menos publicamente) da
meritocracia, pois equivaleria a estimular a indolência em prejuízo do trabalho
duro e responsável. Entretanto, a unanimidade em favor da meritocracia oculta
duas armadilhas que lhe são inerentes, já detectadas por Weber no começo do
século XX.
A primeira armadilha é a uniformização da vida
social, ou seja, a reprodução em todos os campos particulares de uma tipologia
específica de um desses campos, com o óbvio prejuízo para a riqueza da
diversidade cultural e os diferentes modus operandi para tratar das questões
sociais afetas a esferas distintas, o que Weber expõe resignadamente da
seguinte forma: “A concepção que o americano tem do professor que o enfrenta é:
ele me vende seu conhecimento e seus métodos em troca do dinheiro do meu pai,
tal como o verdureiro vende repolhos à minha mãe. Eis tudo”[i].
A resignação deste autor reside
no fato de que ele detecta a tendência, mas não a explora; aposta na prevalência
da figura típica ideal do professor vocacionado.
A segunda armadilha consiste no fato de que um
sistema de avaliação, tal como qualquer outro sistema administrativo, opera com
base em critérios burocráticos que, quanto mais aperfeiçoados na forma e
ampliados na aplicação, tendencialmente gera uma aristocracia burocrática com
poder de determinar o conteúdo das operações que realiza e, por essa via, o
critério de reconhecimento na área em que opera e o acesso aos recursos que
administra. Como é sabido, para o campo propriamente político Weber propõe a
democracia parlamentar como remédio para o burocratismo[ii].
O mal-estar na democracia parece indicar que o remédio não tem funcionado.
Estes efeitos não são
contingentes, mas necessários; porque a lógica interna da meritocracia é a da
univocidade, que determina tanto os critérios de avaliação quanto as premissas
e os procedimentos do sistema de avaliação. Por outras palavras, se não é impossível,
no mínimo é muito difícil avaliar um conjunto heterogêneo de indivíduos e/ou
atividades com vistas a aferir mérito sem um critério comum e, ao mesmo tempo, exprimir
o resultado dessa avaliação em termos inequívocos, se tal critério não for traduzido
em um quantum, uma régua comum, por assim dizer. Quantum que não encontra outra
base material comum a toda atividade, onde se apoiar, se não o tempo de trabalho;
daí a adoção geral do conceito de produtividade, que nada mais é que o quociente
da relação produção/horas trabalhadas de um indivíduo, um departamento, uma
unidade de produção etc.; abstraídas todas as demais condições.
Não por acaso, vivemos a
experiência da aceleração do tempo como nunca antes na história, “tudo que era
sólido e estável se desmancha no ar”[iii]
antes que possa se estabelecer, crescer e frutificar, pois é preciso abrir
espaço para o produto da nova estação. Recentemente[iv],
fomos informados de que o Brasil passou de 24º lugar para 13º em ranking de
pesquisa, desde 1994, com destaque para as áreas de medicina e de ciências
agrárias. Cabe a pergunta: quanto dessas pesquisas colaborou para melhorar a assistência
médica no país e a produção do alimento que chega à mesa do brasileiro (não a
que é exportada)? A resposta para essa questão poderia ser um indicador de avaliação
de pesquisa.
O impacto negativo desse sistema de avaliação
científica baseado na produtividade vem sendo acusado por vários pesquisadores
no Brasil e no exterior, embora não tenha merecido ainda a atenção necessária
das agências de fomento e dos programas de pós-graduação. Cito dois exemplos
ilustrativos de crítica a esse estado de coisas: “Peter Higgs, o físico
britânico que deu nome ao Bóson de Higgs não acredita que a universidade o
empregaria no sistema acadêmico atual porque ele não seria considerado
suficientemente “produtivo””. O professor emérito na Edinburgh University, (...),
publicou menos de 10 artigos após seu trabalho inovador, que identificou o mecanismo
pelo qual material subatômico adquire massa, publicado em 1964. Ele duvida que
progresso similar pudesse ser realizado na cultura acadêmica atual, por causa
das expectativas de que acadêmicos colaborem e mantenham alto número de artigos. Ele diz: “É difícil
imaginar o quanto eu teria de paz e tranquilidade no tipo de ambiente atual
para fazer o que fiz em 1964”.[v]
Os signatários da San Francisco
Declaration on Research Assessment, após algumas observações críticas sobre o
sistema vigente, sugerem alguns critérios de avaliação, dos quais destaco três:
“Recomendação Geral”
1. Não usar métricas baseadas
nos journals, tais como as do Journal Impact Factors, como uma medida
equivalente da qualidade de indivíduos, para avaliar contribuições de um
cientista individual, ou contratação, promoção e decisões de financiamento.
Para Agências de Fomento
2. Ser explícita quanto aos
critérios usados para avaliar a produtividade científica dos requerentes de
concessão e, claro, especialmente, para pesquisadores iniciantes, que o conteúdo
científico de um artigo é muito mais importante do que a métrica ou a identidade
do journal no qual foi publicado.
3. Para os propósitos de
avaliação de pesquisa, considerar o valor e o impacto de todos os resultados
(incluindo banco de dados e software), além das publicações, considerar também
o alcance das medidas de impacto, incluindo indicadores qualitativos do impacto
da pesquisa, tal como influência em políticas e na prática[vi]”.
Da crítica de Higgs e das
recomendações dos signatários da San Francisco Declaration on Research
Assessment, pode-se extrair pelo menos duas indicações para areflexão: 1) a
incompatibilidade em alto grau entre o critério de produtividade e as exigências
da produção científica e 2) a variedade de resultados da pesquisa científica a ser
avaliada. Essas indicações levam à conclusão de que falar de mérito, no
singular, alimenta a lógica da univocidade, acima mencionada, impedindo a
percepção e a devida consideração da pluralidade e diversidade do que ocorre no
campo da produção científica e cultural. Talvez seja o caso de passar-se a
falar de méritos, no plural, e de produção como resultado, não de produtividade
como quociente da relação produção/horas trabalhadas; aliás, mesmo
ali onde o conceito se aplica adequadamente, a empresa, é hora de discutir a
distribuição dos seus benefícios.
* Professor do Depto. de
Ciências Políticas e Econômicas da FFC/UNESP/Marília e pesquisador do NEILS –
Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais e do grupo de pesquisa CPMT –
Cultura e Política do Mundo do Trabalho.
[i] Ciência como vocação.
In: Gerth, H. H. e Mills, c Wright (org.). Ensaios de sociologia. Rio de
Janeiro Editora Guanabara, 1979, p. 176-177.
[ii] Veja-se Parlamento e
governo numa Alemanha reordenada. Petrópolis, RJ: Vozes,
[iii] Frase extraída d’O
Manifesto Comunista, de Marx e Engels.
[iv] Folha de São Paulo de
01/11/14
[v] Disponível em:
http://www.theguardian.com/science/2013/dec/06/peter-higgs-boson-academic-system
[vi] Disponível em:
http://www.ascb.org/dora-old/files/SFDeclarationFINAL.pdf
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