José Rubens
Mascarenhas de Almeida
Como historiador e
materialista, não me esquivo de abordar a memória como elemento social e não como
mero aporte biológico ou psíquico. Aliás, um sociólogo de nome Maurice
Halbwachs já chamava atenção para o caráter coletivo e social da memória, entre
o final do século XIX e início do XX, num livro despretensioso denominado
Memória Coletiva. Nele, evidenciava que, no campo da memória, o individual se
desenhava no coletivo. Mas, Halbwachs abordava a construção da memória sem dar
conta das contradições sociais que permeiam a esfera social. Ao não primar pelo
conflito de classes, sua teoria naturalizava as relações sociais, apresentando
a realidade como algo inevitável, dado, posto.
Neste dia (31/03) em
que se (des) comemora (enquanto antítese de desmemoria) o Golpe Militar no
Brasil, quero fazer uma leitura da memória não como algo relacionado meramente
ao passado. Aliás, a memória, recorrendo
ao passado, é lida no presente da rememoração. Ou seja, passa pelos olhos
do presente. Quando rememoramos reminiscências, estamos revisitando o passado –
distante ou recente –, mas com um olhar de revisita,
retorno a momentos e lugares vividos.
Elizabeth Jelin[i],
socióloga argentina, afirma que as ditaduras na América Latina tratam de um
passado recente, porque mui presente entre nós (2012, p. 10). A memória que
quero evidenciar ressalta processos autoritários e não só os que dizem respeito
à ditadura militar desferida contra os trabalhadores brasileiros e que hoje é
rememorada em seu meio século de deflagração. A memória do autoritarismo que
aqui se revisita faz parte da história própria dos povos oprimidos da América
Latina desde a chegada dos conquistadores europeus, passando pelos caudilhos ou
coronéis. Esse autoritarismo congênito, socialmente forjado, nasce com a
conquista do continente americano e grassa pela formação colonial e se estendeu
à republica, chegando até os dias atuais, contrariando os discursos floridos e
maquiados reverberados pela democracia burguesa.
Registrando de soslaio a
barbárie instalada aqui pelos conquistadores e colonizadores europeus, que
também eram cristãos, mercantilistas, brancos e de cultura ocidental, a forma de
governo instituída no pós-independência (1822) no Brasil foi marcada por um
profundo autoritarismo. Às vezes civil, às vezes militar. Noutras,
civil-militar.
Tendo como referência
Le Goff quando afirma que o passado é, “ao mesmo tempo, passado e presente” (p.
41)[ii],
podemos afirmar, sem medo de errar, que memória não diz respeito apenas ao
passado, é também expressão do presente, eivada de mensagem ideológica, a
refletir as diferentes forças que se digladiam na sociedade pelo domínio social.
E, sendo presente, aponta para o futuro, por isto também campo da luta de
classes. Assim, memória é elemento construído socialmente, não isento das contraditórias
relações sociais que envolvem os sujeitos – e (as) sujeitados – dos processos
sociais, eivados que são de contradições: de classe, sexistas, racistas, etc.
Essas interações constituem a dinâmica da produção da memória.
Entulho
autoritário
Nesse sentido,
pressionado pelas contradições sociais e pela ideologia dominante, o campo da
memória acaba por refletir as lutas sociais que aí também explodem como reflexo
das lutas de classes. Exemplo disso, a atual criminalização das manifestações políticas
e sociais que ganharam corpo a partir de junho de 2013 no Brasil evidenciou
também que os aparelhos repressivos do “Estado democrático” atuam nos mesmos
moldes da ditadura. Isto é memória, mas também é história.
Esse “passado que não
quer passar” (Calveiro)[iii]
aqui no Brasil é marcado pela persistência de boa parte do entulho autoritário
da ditadura militar de 1964 que, governo após governo, vem sido varrido para
debaixo do tapete. Mesmo a Comissão Nacional da Verdade, trata-se de uma
comissão de “meia-verdade”, pelos poderes a ela outorgados e por pautar-se na
Lei da Anistia (Lei nº 11.961/2009, regulamentada pelo do Decreto nº 6.893/2009),
que tem por pressuposto as prerrogativas militares da ditadura.
Outro entulho
autoritário é a Polícia Militar. Com as atuais características, é fruto do
Golpe Militar de 1964, fundada na concepção de inimigo interno. Á época,
justificava-se como instrumento de combate ao comunismo, antonomásia usada para
a repressão a todo e qualquer opositor ao regime, atendendo às prerrogativas da
ideologia da Doutrina de Segurança Nacional[iv].
Ainda hoje a Polícia Militar brasileira continua atuando como se a ditadura
ainda estivesse vívida – e acredito que está, apesar da máscara ideológica que
a recobre –, mostrando-se um instrumento anacrônico de um modelo idem de
segurança pública cuja característica é inerente àquele período obscuro de
nossa história. Vejamos. A Folha de S.P acaba de publicar informação dando
conta de que, atualmente, existem 16 projetos de criminalização das
manifestações populares[v].
Matar suspeitos pobres sem
julgamento é rotina na polícia brasileira. Levantamento feito pela BBC Brasil,
a PM do Rio matou seis vezes mais pessoas durante ações de combate ao crime do
que seus pares da Polícia Civil em São Paulo no ano de 2011[vi]. Dados
de 16/07/2007 dão conta de que a polícia do Rio matava 41 civis por cada
policial morto[vii].
Nesse sentido, quando se fala em “guerra” interna, isso não passa de um temendo
jargão ideologizado. A guerra em vigor é a travada no âmbito da luta de
classes, basta que se comprove de que classe social é formado o grande
contingente de vítimas: os pobres. Os fatos são tão gritantes que, em
30/05/2012, o Conselho da ONU sugeriu o fim da Polícia Militar no Brasil,
recomendação apresentada pela Dinamarca, alegando execuções sumárias desrespeito
aos direitos humanos[viii].
“Dos filhos deste solo és... mãe gentil?”
A memória e a história
desses últimos meio século registraram que a gentileza dessa mãe faltou a tantos
filhos torturados, desaparecidos, assassinados cruelmente... Alguns deles bem
próximos de nós (todos próximos e identificados pela luta por uma sociedade
justa ou, no mínimo, menos injusta), como Dinaelza Santana Coqueiro (conquistense
morta na Guerrilha do Araguaia) e Péricles Gusmão Régis, que foi morto nas
dependências do Nono Batalhão de Polícia Militar (Vitória da Conquista); Aderval
Alves Coqueiro (de Aracatu); Rosalindo de Souza (de Caldeirão Grande); Vandique
Reidner Pereira Coqueiro (de Boa Nova); Vitorino Alves Moitinho (de Poções); e
tantos outros, só para citar alguns mais próximos, geograficamente, de nós
(Bahia).
Outros, por outro lado,
como defensores da ignominia, da opressão, como também registram a memória e a
história: Amílcar Lobo, médico psiquiatra que emprestou seus serviços à “tortura
científica”; Dalmar Caribé, à época da ditadura Cabo do Exército e torturador
que matou friamente Carlos Lamarca[ix];
Cabo
Anselmo, biografia degradante e perversa criada pelo regime de terrorismo estatal,
responsável por um sem número de mortes que nem mesmo ele pode contabilizar,
entregou aos milicos, inclusive, a própria mulher, grávida de sete meses. Ela e
o bebê foram assassinados pelo regime. Passaríamos centenas de páginas aqui
rememorando as atrocidades cometidas pelos carrascos da ditadura, mas sem
concebê-los por monstros, mas por indivíduos forjados no cotidiano brutal de
uma ditadura civil-militar de caráter capitalista.
Uma
ditadura civil-militar
Tudo o que as ditaduras
fizeram para além daquilo que se denominou Estado de Direito, a burguesia,
nacional e estrangeira, foi partícipe. A ditadura eliminou garantias
individuais e coletivas, cassou mandatos e direitos, censurou e proibiu, torturou,
prendeu arbitrariamente, saqueou bens de seus inimigos políticos, quebrou toda
e qualquer garantia política institucional, conferiu a seus agentes policiais e
militares o poder de sequestrar, torturar, matar e promover desaparecimentos
forçados. Enfim, jogou na lata de lixo aquilo que a própria classe dominante denomina
“Estado de Direito”.
Todas essas ações foram
financiadas e apoiadas logística e ideologicamente pelas burguesias nacional e
estrangeira, mostrando que, para o processo de acumulação capitalista tanto faz
o regime político. Aliás, a participação da burguesia nas ditaduras não foi
privilégio da brasileira, mas de todos os processos ditatoriais
latino-americanos. Exemplo marcante foi o do empresário dinamarquês radicado no
Brasil, presidente do Grupo Ultra, Henning Boilensen (ver filme a seguir). Sua participação foi ativa (financiando, disponibilizando os veículos
da empresa, presenciando as torturas) na OBAN (Operação Bandeirante[x]). Sua
presença é memória “honrada” daqueles momentos, agraciada com nome de rua em
São Paulo (CEP 05338-050). Memória oficial. A história também registra outros
cúmplices, como empresários da Camargo Correa, da Folha de São Paulo, a Globo,
de Roberto Marinho, e o Grupo Abril, de Victor Civita[xi], entre
muitos outros. Na Argentina, a indústria de automóveis Ford, durante a ditadura
cedeu seus espaços para que as forças repressoras espionassem seus
funcionários, prendessem, custodiassem, torturassem, etc.
Aliás, por tudo o que
fez e representou, a ditadura brasileira não foi só uma ditadura brasileira. Na
conjuntura em que se deu, todo o Cone Sul da região (Argentina, Uruguai, Chile
e Paraguai) também sofreu a sua. Todas elas atenderam, a partir de sua
peculiaridade, às premissas da famigerada Doutrina de Segurança Nacional,
doutrina forjada no contexto da Guerra Fria, capitaneada pelos EUA e sua Escola
Militar das Américas, que exportava a ideologia do inimigo interno (comunista).
Tal ideologia defendia os interesses dos setores dominantes locais e do capital
estrangeiro, que deu frutos como, no Brasil, à Escola Superior de Guerra e ao
famigerado Serviço Nacional de Informações. Páginas tristes da história e
memória nacionais.
Nesse sentido mais
amplo (internacional), as memórias que se entrecruzam na história não são só
nossas (nacional), mas planetárias, pois tratam de uma construção a partir do
processo de acumulação de capitais em escala internacional. O atesta a participação
do grande capital estrangeiro assim como manobras militares internacionais,
como a operação Brother Sam (força-tarefa da marinha estadunidense, retaguarda
para o golpe); operativos de intelligentsia
(CIA e FBI)[xii];
diplomática (OEA); ideológico (USAID – Umited
States Agency for International Development); a Aliança para o Progresso
(1964); A tutela do FMI; a Operação Condor (a aliança do terror, na qual os
militares do Cone Sul se uniram para perseguir, torturar, exterminar mesmo
aqueles dissidentes que se encontravam no exílio. Todo uma literatura dá conta
disso.
Nesse
entendimento dialético (memórias enquanto produção social e constructo político e ideológico e, portanto, lócus de conflitos e contradições), as ditaduras
não se deram por uma questão cultural ou por um estalo fortuito das
instituições militares brasileiras, que, num surto psicopático, resolveram
implementar atroz regime. Elas foram uma variante da violência de classe,
imposta pelo Estado burguês em favor da manutenção de sua dominação. Não à-toa
se deram em sequência em quase todos os países da América Latina: Brasil, 1964;
Chile, 1973; Argentina,1966 e 1976; Peru, 1962; Bolívia,1964, só para citar os
do Cone Sul. Assim, lembrar ou esquecer são processos típicos da luta de
classes quando explode, ideologicamente, no campo da memória.
Para finalizar, quero ressaltar
que discutir o direito à verdade, à memória, a desvendar os esquecimentos
acerca do processo ditatorial no Brasil é um exercício saudável e uma
experiência importante, quer do ponto de vista social, intelectual ou político
– que são uma só coisa – inda mais por sabermos viver num regime político de
fragilidade imensa, constantemente ameaçado pelo autoritarismo, fardado ou não.
[iii] CALVEIRO,
Pilar. Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina. Coleção
estado de Sítio. São Paulo: Boitempo, 2013.
[iv] Acerca ver
COMBLIN, Pe. Joseph. A ideologia da segurança nacional: o poder militar na
América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
[v] Ver “Em ano
eleitoral, Congresso tem fila de projetos contra manifestante violento”.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/03/1424810-em-ano-eleitoral-governo-tem-fila-de-projetos-contra-manifestante-violento.shtml.
Acessado em 31/03/2014.
[vi] Acerca ver: “PM
mata seis vezes mais que Policia Civil em São Paulo”. Disponível em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/06/120601_direitos_humanos_policias_onu_lk.shtml.
Acessado em 31/03/2014.
[vii] Ver: “Polícia
do Rio mata 41 civis para cada policial morto”. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1607200701.htm. Acessado em
31/03/2014.
[viii] Ver “Conselho
da ONU sugere fim da Polícia Militar no Brasil”. Disponível em:
http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,conselho-da-onu-sugere-fim-de-policia-militar-no-brasil,880073,0.htm.
Acessado em 31/03/2014.
[ix] Acerca ver “O
caratê e a ditadura, também entre nós”. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/colunas/papodeesporte/ult1419u12.shtml.
Acessado em 31/03/2014. Também “Esculacho na Bahia denuncia assassino de
Lamarca”. Disponível em:
http://levante.org.br/esculacho-na-bahia-denuncia-assassino-de-lamarca/.
Acessado em 31/03/2014.
[x] Estrutura
repressiva governamental que antecedeu o Destacamento de Operações de
Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi).
[xi] Acerca ver
“Empresários que apoiaram o golpe de 64 construíram grandes fortunas com
dinheiro público”. Disponível em:
http://www.revistaforum.com.br/blog/2014/03/empresarios-que-apoiaram-o-golpe-de-64-construiram-grandes-fortunas-com-dinheiro-publico/.
Acessado em 31/03/2014.
[xii] Edgard Hoover,
duas semanas após o golpe declarava, em jornal brasileiro, do orgulho da
participação do FBI no processo. Acerca ver SODRÉ, Nelson Werneck. Vida e morte
da ditadura: 20 anos de autoritarismo no Brasil. 2ª ed. Petróplis: Vozes, 1984.
P. 65.
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