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terça-feira, 1 de abril de 2014

A ditadura brasileira e a luta de classes no campo da memória


José Rubens Mascarenhas de Almeida


Como historiador e materialista, não me esquivo de abordar a memória como elemento social e não como mero aporte biológico ou psíquico. Aliás, um sociólogo de nome Maurice Halbwachs já chamava atenção para o caráter coletivo e social da memória, entre o final do século XIX e início do XX, num livro despretensioso denominado Memória Coletiva. Nele, evidenciava que, no campo da memória, o individual se desenhava no coletivo. Mas, Halbwachs abordava a construção da memória sem dar conta das contradições sociais que permeiam a esfera social. Ao não primar pelo conflito de classes, sua teoria naturalizava as relações sociais, apresentando a realidade como algo inevitável, dado, posto.

Neste dia (31/03) em que se (des) comemora (enquanto antítese de desmemoria) o Golpe Militar no Brasil, quero fazer uma leitura da memória não como algo relacionado meramente ao passado. Aliás, a memória, recorrendo ao passado, é lida no presente da rememoração. Ou seja, passa pelos olhos do presente. Quando rememoramos reminiscências, estamos revisitando o passado – distante ou recente –, mas com um olhar de revisita, retorno a momentos e lugares vividos.

Elizabeth Jelin[i], socióloga argentina, afirma que as ditaduras na América Latina tratam de um passado recente, porque mui presente entre nós (2012, p. 10). A memória que quero evidenciar ressalta processos autoritários e não só os que dizem respeito à ditadura militar desferida contra os trabalhadores brasileiros e que hoje é rememorada em seu meio século de deflagração. A memória do autoritarismo que aqui se revisita faz parte da história própria dos povos oprimidos da América Latina desde a chegada dos conquistadores europeus, passando pelos caudilhos ou coronéis. Esse autoritarismo congênito, socialmente forjado, nasce com a conquista do continente americano e grassa pela formação colonial e se estendeu à republica, chegando até os dias atuais, contrariando os discursos floridos e maquiados reverberados pela democracia burguesa.

Registrando de soslaio a barbárie instalada aqui pelos conquistadores e colonizadores europeus, que também eram cristãos, mercantilistas, brancos e de cultura ocidental, a forma de governo instituída no pós-independência (1822) no Brasil foi marcada por um profundo autoritarismo. Às vezes civil, às vezes militar. Noutras, civil-militar.

Tendo como referência Le Goff quando afirma que o passado é, “ao mesmo tempo, passado e presente” (p. 41)[ii], podemos afirmar, sem medo de errar, que memória não diz respeito apenas ao passado, é também expressão do presente, eivada de mensagem ideológica, a refletir as diferentes forças que se digladiam na sociedade pelo domínio social. E, sendo presente, aponta para o futuro, por isto também campo da luta de classes. Assim, memória é elemento construído socialmente, não isento das contraditórias relações sociais que envolvem os sujeitos – e (as) sujeitados – dos processos sociais, eivados que são de contradições: de classe, sexistas, racistas, etc. Essas interações constituem a dinâmica da produção da memória.


Entulho autoritário

Nesse sentido, pressionado pelas contradições sociais e pela ideologia dominante, o campo da memória acaba por refletir as lutas sociais que aí também explodem como reflexo das lutas de classes. Exemplo disso, a atual criminalização das manifestações políticas e sociais que ganharam corpo a partir de junho de 2013 no Brasil evidenciou também que os aparelhos repressivos do “Estado democrático” atuam nos mesmos moldes da ditadura. Isto é memória, mas também é história.

Esse “passado que não quer passar” (Calveiro)[iii] aqui no Brasil é marcado pela persistência de boa parte do entulho autoritário da ditadura militar de 1964 que, governo após governo, vem sido varrido para debaixo do tapete. Mesmo a Comissão Nacional da Verdade, trata-se de uma comissão de “meia-verdade”, pelos poderes a ela outorgados e por pautar-se na Lei da Anistia (Lei nº 11.961/2009, regulamentada pelo do Decreto nº 6.893/2009), que tem por pressuposto as prerrogativas militares da ditadura.

Outro entulho autoritário é a Polícia Militar. Com as atuais características, é fruto do Golpe Militar de 1964, fundada na concepção de inimigo interno. Á época, justificava-se como instrumento de combate ao comunismo, antonomásia usada para a repressão a todo e qualquer opositor ao regime, atendendo às prerrogativas da ideologia da Doutrina de Segurança Nacional[iv]. Ainda hoje a Polícia Militar brasileira continua atuando como se a ditadura ainda estivesse vívida – e acredito que está, apesar da máscara ideológica que a recobre –, mostrando-se um instrumento anacrônico de um modelo idem de segurança pública cuja característica é inerente àquele período obscuro de nossa história. Vejamos. A Folha de S.P acaba de publicar informação dando conta de que, atualmente, existem 16 projetos de criminalização das manifestações populares[v].

Matar suspeitos pobres sem julgamento é rotina na polícia brasileira. Levantamento feito pela BBC Brasil, a PM do Rio matou seis vezes mais pessoas durante ações de combate ao crime do que seus pares da Polícia Civil em São Paulo no ano de 2011[vi]. Dados de 16/07/2007 dão conta de que a polícia do Rio matava 41 civis por cada policial morto[vii]. Nesse sentido, quando se fala em “guerra” interna, isso não passa de um temendo jargão ideologizado. A guerra em vigor é a travada no âmbito da luta de classes, basta que se comprove de que classe social é formado o grande contingente de vítimas: os pobres. Os fatos são tão gritantes que, em 30/05/2012, o Conselho da ONU sugeriu o fim da Polícia Militar no Brasil, recomendação apresentada pela Dinamarca, alegando execuções sumárias desrespeito aos direitos humanos[viii]. “Dos filhos deste solo és... mãe gentil?”

A memória e a história desses últimos meio século registraram que a gentileza dessa mãe faltou a tantos filhos torturados, desaparecidos, assassinados cruelmente... Alguns deles bem próximos de nós (todos próximos e identificados pela luta por uma sociedade justa ou, no mínimo, menos injusta), como Dinaelza Santana Coqueiro (conquistense morta na Guerrilha do Araguaia) e Péricles Gusmão Régis, que foi morto nas dependências do Nono Batalhão de Polícia Militar (Vitória da Conquista); Aderval Alves Coqueiro (de Aracatu); Rosalindo de Souza (de Caldeirão Grande); Vandique Reidner Pereira Coqueiro (de Boa Nova); Vitorino Alves Moitinho (de Poções); e tantos outros, só para citar alguns mais próximos, geograficamente, de nós (Bahia).

Outros, por outro lado, como defensores da ignominia, da opressão, como também registram a memória e a história: Amílcar Lobo, médico psiquiatra que emprestou seus serviços à “tortura científica”; Dalmar Caribé, à época da ditadura Cabo do Exército e torturador que matou friamente Carlos Lamarca[ix]; Cabo Anselmo, biografia degradante e perversa criada pelo regime de terrorismo estatal, responsável por um sem número de mortes que nem mesmo ele pode contabilizar, entregou aos milicos, inclusive, a própria mulher, grávida de sete meses. Ela e o bebê foram assassinados pelo regime. Passaríamos centenas de páginas aqui rememorando as atrocidades cometidas pelos carrascos da ditadura, mas sem concebê-los por monstros, mas por indivíduos forjados no cotidiano brutal de uma ditadura civil-militar de caráter capitalista.

Uma ditadura civil-militar

Tudo o que as ditaduras fizeram para além daquilo que se denominou Estado de Direito, a burguesia, nacional e estrangeira, foi partícipe. A ditadura eliminou garantias individuais e coletivas, cassou mandatos e direitos, censurou e proibiu, torturou, prendeu arbitrariamente, saqueou bens de seus inimigos políticos, quebrou toda e qualquer garantia política institucional, conferiu a seus agentes policiais e militares o poder de sequestrar, torturar, matar e promover desaparecimentos forçados. Enfim, jogou na lata de lixo aquilo que a própria classe dominante denomina “Estado de Direito”.

Todas essas ações foram financiadas e apoiadas logística e ideologicamente pelas burguesias nacional e estrangeira, mostrando que, para o processo de acumulação capitalista tanto faz o regime político. Aliás, a participação da burguesia nas ditaduras não foi privilégio da brasileira, mas de todos os processos ditatoriais latino-americanos. Exemplo marcante foi o do empresário dinamarquês radicado no Brasil, presidente do Grupo Ultra, Henning Boilensen (ver filme a seguir). Sua participação foi ativa (financiando, disponibilizando os veículos da empresa, presenciando as torturas) na OBAN (Operação Bandeirante[x]). Sua presença é memória “honrada” daqueles momentos, agraciada com nome de rua em São Paulo (CEP 05338-050). Memória oficial. A história também registra outros cúmplices, como empresários da Camargo Correa, da Folha de São Paulo, a Globo, de Roberto Marinho, e o Grupo Abril, de Victor Civita[xi], entre muitos outros. Na Argentina, a indústria de automóveis Ford, durante a ditadura cedeu seus espaços para que as forças repressoras espionassem seus funcionários, prendessem, custodiassem, torturassem, etc.
 

Aliás, por tudo o que fez e representou, a ditadura brasileira não foi só uma ditadura brasileira. Na conjuntura em que se deu, todo o Cone Sul da região (Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai) também sofreu a sua. Todas elas atenderam, a partir de sua peculiaridade, às premissas da famigerada Doutrina de Segurança Nacional, doutrina forjada no contexto da Guerra Fria, capitaneada pelos EUA e sua Escola Militar das Américas, que exportava a ideologia do inimigo interno (comunista). Tal ideologia defendia os interesses dos setores dominantes locais e do capital estrangeiro, que deu frutos como, no Brasil, à Escola Superior de Guerra e ao famigerado Serviço Nacional de Informações. Páginas tristes da história e memória nacionais.

Nesse sentido mais amplo (internacional), as memórias que se entrecruzam na história não são só nossas (nacional), mas planetárias, pois tratam de uma construção a partir do processo de acumulação de capitais em escala internacional. O atesta a participação do grande capital estrangeiro assim como manobras militares internacionais, como a operação Brother Sam (força-tarefa da marinha estadunidense, retaguarda para o golpe); operativos de intelligentsia (CIA e FBI)[xii]; diplomática (OEA); ideológico (USAID – Umited States Agency for International Development); a Aliança para o Progresso (1964); A tutela do FMI; a Operação Condor (a aliança do terror, na qual os militares do Cone Sul se uniram para perseguir, torturar, exterminar mesmo aqueles dissidentes que se encontravam no exílio. Todo uma literatura dá conta disso.

Nesse entendimento dialético (memórias enquanto produção social e constructo político e ideológico e, portanto, lócus de conflitos e contradições), as ditaduras não se deram por uma questão cultural ou por um estalo fortuito das instituições militares brasileiras, que, num surto psicopático, resolveram implementar atroz regime. Elas foram uma variante da violência de classe, imposta pelo Estado burguês em favor da manutenção de sua dominação. Não à-toa se deram em sequência em quase todos os países da América Latina: Brasil, 1964; Chile, 1973; Argentina,1966 e 1976; Peru, 1962; Bolívia,1964, só para citar os do Cone Sul. Assim, lembrar ou esquecer são processos típicos da luta de classes quando explode, ideologicamente, no campo da memória.

Para finalizar, quero ressaltar que discutir o direito à verdade, à memória, a desvendar os esquecimentos acerca do processo ditatorial no Brasil é um exercício saudável e uma experiência importante, quer do ponto de vista social, intelectual ou político – que são uma só coisa – inda mais por sabermos viver num regime político de fragilidade imensa, constantemente ameaçado pelo autoritarismo, fardado ou não.



[i] JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. 2ª ed. Lima: IEP, 2012.
[ii] LE GOFF. J. História e memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.
[iii] CALVEIRO, Pilar. Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina. Coleção estado de Sítio. São Paulo: Boitempo, 2013.
[iv] Acerca ver COMBLIN, Pe. Joseph. A ideologia da segurança nacional: o poder militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
[v] Ver “Em ano eleitoral, Congresso tem fila de projetos contra manifestante violento”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/03/1424810-em-ano-eleitoral-governo-tem-fila-de-projetos-contra-manifestante-violento.shtml. Acessado em 31/03/2014.
[vi] Acerca ver: “PM mata seis vezes mais que Policia Civil em São Paulo”. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/06/120601_direitos_humanos_policias_onu_lk.shtml. Acessado em 31/03/2014.
[vii] Ver: “Polícia do Rio mata 41 civis para cada policial morto”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1607200701.htm. Acessado em 31/03/2014.
[viii] Ver “Conselho da ONU sugere fim da Polícia Militar no Brasil”. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,conselho-da-onu-sugere-fim-de-policia-militar-no-brasil,880073,0.htm. Acessado em 31/03/2014.
[ix] Acerca ver “O caratê e a ditadura, também entre nós”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/colunas/papodeesporte/ult1419u12.shtml. Acessado em 31/03/2014. Também “Esculacho na Bahia denuncia assassino de Lamarca”. Disponível em: http://levante.org.br/esculacho-na-bahia-denuncia-assassino-de-lamarca/. Acessado em 31/03/2014.
[x] Estrutura repressiva governamental que antecedeu o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi).
[xi] Acerca ver “Empresários que apoiaram o golpe de 64 construíram grandes fortunas com dinheiro público”. Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/blog/2014/03/empresarios-que-apoiaram-o-golpe-de-64-construiram-grandes-fortunas-com-dinheiro-publico/. Acessado em 31/03/2014.
[xii] Edgard Hoover, duas semanas após o golpe declarava, em jornal brasileiro, do orgulho da participação do FBI no processo. Acerca ver SODRÉ, Nelson Werneck. Vida e morte da ditadura: 20 anos de autoritarismo no Brasil. 2ª ed. Petróplis: Vozes, 1984. P. 65.

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