"O
poder político cívico-militar não poupou esforços para a cooptação da Igreja
Católica pelo simples fato de que é a Igreja da grande maioria do povo
brasileiro e de grande influência no mundo inteiro", diz Antonio Cechin.
31/03/2014
"A maior parte da Igreja,
em relação à quartelada cívico-militar de 1964, por causa principalmente de um
anticomunismo doentio causado por uma consciência ingênua, não conseguia
dominar e distinguir diferentes ideologias", comenta Antônio Cechin, em
entrevista por e-mail à IHU On-Line, ao refletir sobre o papel daIgreja no
Golpe Civil-Militar de 1964. "A 'marcha do Rosário pelas famílias em favor
da paz' no Brasil, capitaneada pelo Padre Peyton, norte-americano, nas vésperas
do Golpe, em defesa do país contra o comunismo que a mídia proclamava como
iminente, encheu o largo da Prefeitura de Porto Alegre com milhares e milhares
de pessoas. Essas marchas, feitas em todas as principais cidades do Brasil,
foram o ato de massa que deu legitimidade e respaldo civil-religioso ao golpe
que se estava gestando em nosso meio e que fora brecado alguns anos antes pelo
Levante pela Legalidade do povo rio-grandensecomandado por Leonel
Brizola", complementa.
Preso e torturado duas vezes,
Antônio Cechin conta que a razão de suas detenções estava relacionada ao fato
de ser, como ele mesmo diz, "um Catequista da Libertação". Cechin
disse diversas vezes que deve sua vida a Dom Vicente Scherer, que lhe tirou do
cárcere nas duas ocasiões, mas mantém um posicionamento crítico ao pensar nas
figuras de Scherer e de Dom Hélder Câmara no contexto de 1964. "Para mim,
Dom Vicente foi um Pastor zelosíssimo daquilo que hoje considero o modelo
europeu de catolicismo que chegou da Europa através de Portugal em 1500. Modelo
esse que se esgotou com o Concílio Vaticano II. (...) Dom Hélder foi o
iniciador da Igreja do Brasil e com ele retornamos ao modelo de Igreja dos
Primórdios, porque 'Deus é para nós o único absoluto, porém o absoluto de Deus
são os pobres'", avalia.
Antônio Cechin é irmão marista,
graduado em Letras Clássicas (grego, latim e português) e em Ciências Jurídicas
e Sociais. Trabalha como agente de Pastoral em diversas periferias da região
metropolitana de Porto Alegre, sendo também assessor de Comunidades Eclesiais
de Base do Rio Grande do Sul, de catadores e de recicladores. Desempenha ainda
a função de coordenador do Comitê Sepé Tiaraju e da Pastoral da Ecologia do
Regional Sul III daCNBB. Escreveu Empoderamento Popular: Uma pedagogia de
libertação (Porto Alegre: Estef, 2010). Publica periodicamente artigos nas
Notícias do Dia do sítio do IHU.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como foi a
atuação da Igreja Católica quando houve o Golpe de 1964? De que maneira a
instituição se posicionou em relação à situação política da época?
Antônio Cechin - Assim como o
Golpe de 1964 não foi somente militar, mas sim cívico-militar, fazendo parte da
sociedade civil também a própria Igreja teve certa participação. Paulo Freire,
nosso maior educador brasileiro, criou a palavra conscientização, enriquecendo
assim o vocabulário da língua portuguesa. Até Paulo Freire só falávamos em
tomada de consciência. Porém, conscientização é infinitamente mais do que isso,
porque Freire, em suas palestras, distinguia sempre quatro graus de
consciência. Em ordem crescente: consciência mítica, empírica, ingênua e
científica.
Quando se trata de análise da
realidade é que mais se pode evidenciar se as pessoas o fazem com uma simples
tomada de consciência ou se são pessoas conscientizadas, e até mesmo se pode
identificar o grau de consciência de cada um e em que espécie de consciência
navegam pelo método de alfabetização criado por Paulo Freire.
Enquanto não se adota o
instrumento global de análise da realidade alinhavado particularmente por Marx
- inventor do comunismo depois de destrinchar por completo o sistema
capitalista em análise minuciosa -, embarca-se com a maior facilidade nos meios
de comunicação do sistema capitalista que, desde muito tempo atrás, para salvar
a pele da classe dominante do país, em face da extrema pobreza que o
capitalismo gera, acaba-se caindo na ideologia da sociedade hegemônica.
Cunhou-se, na época, até a expressão "comunista come crianças" para
designar o horror causado aos que estão bem demais no mundo, por causa da riqueza
que esbanjam, em relação a qualquer possibilidade de mudança para um sistema
político de uma sociedade que não seja o capitalismo imperante.
A maior parte da Igreja, em
relação à quartelada cívico-militar de 1964, por causa principalmente de um
anticomunismo doentio causado por uma consciência ingênua, não conseguia
dominar e distinguir diferentes ideologias. A "Marcha do Rosário pelas
famílias em favor da paz" no Brasil, capitaneada pelo Padre Peyton,
norte-americano, nas vésperas do Golpe, em defesa do país contra o comunismo
que a mídia proclamava como iminente, em Porto Alegre, encheu o Largo da
Prefeitura com milhares e milhares de pessoas. Essas marchas feitas em todas as
principais cidades do Brasil foram o ato de massa que deu legitimidade e
respaldo civil-religioso ao golpe que se estava gestando em nosso meio e que
fora brecado alguns anos antes pelo Levante pela Legalidade do povo
rio-grandense comandado por Leonel Brizola.
A Assembleia Geral da CNBB
daquele ano de 1964, contra o voto de uma minoria conscientizada, agradeceu
publicamente aos militares pelo fato de terem, através do Golpe, "salvado
o país do comunismo" e pelo mesmo acontecimento realizaram uma cerimônia
de ação de graças a Deus e a Nossa Senhora Aparecida, padroeira doBrasil.
IHU On-Line - Como o Concílio
Vaticano II gerou reflexos na postura da Igreja no Brasil com relação ao Golpe?
Antônio Cechin - O golpe
militar se deu durante o período em que se realizava o Concílio Vaticano II ,
que iniciou em 11 de outubro de 1962 com o discurso de abertura do papa João
XXIII. Foi realizado em quatro sessões, e só terminou no dia 8 de dezembro de
1965, três anos depois de ter sido iniciado.
O poder político cívico-militar
não poupou esforços para a cooptação da Igreja Católica pelo simples fato de
que é aIgreja da grande maioria do povo brasileiro e de grande influência no
mundo inteiro. Por isso, um dos primeiros atos dos golpistas foi fretar um
avião, sem despesa nenhuma para a CNBB, para a totalidade dos bispos
brasileiros se deslocarem até o Vaticano a fim de participar da sessão
conciliar do ano de 1964. Conquistando os bispos, pensavam que também teriam o
povo cristão do seu lado.
Dentro do avião e depois na
Domus Mariae, em Roma, onde o episcopado brasileiro esteve hospedado durante
mais de um mês de sessão conciliar, os bispos, apesar do entrecruzamento diário
nas aulas conciliares, aproveitaram o ensejo para também eleger a nova direção
da CNBB. A maioria conservadora do episcopado elegeu uma diretoria composta de
bispos conservadores e como tais, tolerantes em relação ao Golpe.
Defenestraram simplesmente Dom
Hélder Câmara, que era o secretário executivo da CNBB, logo ele que havia sido
o fundador do órgão colegiado dos bispos, atendendo solicitação do Papa João
XXIII. Essa deposição do "bispo vermelho", segundo o epíteto que lhe
criaram os militares da ditadura, serviu de cobertura à proibição total que
impuseram a toda a imprensa brasileira no sentido de jamais publicar algo sobre
Dom Hélder, nem o próprio nome.
Também foram demitidos todos os
assessores que faziam parte dos quadros da Conferência, escolhidos por Dom
Hélder. Haviam escolhido para novo presidente Agnelo Rossi e, para o setor dos
leigos, o cardeal Vicente Scherer. De volta ao Brasil, o cardeal Scherer fechou
a Ação Católica Brasileira especializada, que reunia a fina flor da militância
católica totalmente contrária ao Golpe e que sofreu o impacto maior da
ditadura, transformando vários deles nos primeiros mártires do regime.
Exemplo emblemático foi o
assassinato do Padre Henrique Pereira Neto, emRecife. Ele era Assessor da
Juventude Universitária Católica - JUC naDiocese de Dom Hélder. Não podendo
assassinar o bispo Dom Hélder, o militares mataram o sacerdote mais engajado
nos trabalhos pastorais.
Em contraposição, a postura da
primeira direção da CNBB, diretoria organizada por Dom Hélder, teve o conteúdo
central do Concílio aprovado dentro da linha progressista João XXIII - Helder
Câmara. O Concílio na realidade teve dois encerramentos: o primeiro, na grande
Praça São Pedro doVaticano, e o segundo, no recôndito das Catacumbas do início
do cristianismo. Perseguidos os cristãos pelos imperadores romanos, o povo fiel
se reunia secretamente nos subterrâneos da cidade. Aí também enterrava seus
mártires. Esse segundo encerramento organizado por Dom Hélder Câmara reuniu em
torno de uma centena de bispos do mundo inteiro e passou para a história com o
nome de Pacto das Catacumbas.
Estabeleceram entre si um pacto
destinado a transformar a Igreja universal em autêntica Igreja Pobre com total
opção pelos pobres. Com o Pacto das Catacumbas Dom Hélder profetizou a leva de
mártires que a Igreja do Brasil e de todo o continente latino-americano
forneceria para enriquecimento do martirológio da Igreja Católica.
IHU On-Line - O que foram as
fichas catequéticas e por que incomodavam tanto os militares? Essa
"Catequese Nova e Libertadora", como o senhor mesmo definiu e propôs,
foi a razão de suas prisões?
Antônio Cechin - Foi no início
da década de 1950 que Dom Hélder, quando bispo auxiliar do cardeal do Rio de
Janeiro, começou um discurso inteiramente novo. Mirrado que era Dom Hélder
fisicamente, fazia discursos tonitruantes que ecoavam pelo mundo inteiro. Com
argumentos irrefutáveis, tomando até Jesus Cristo, Filho de Deusencarnado como
modelo da opção pelos pobres, pregava a obrigação que tínhamos para com os
"últimos" que compõem a imensa maioria da população brasileira em
situação de fome e miséria.
Aconteceu então o mergulho da
Igreja nas periferias, nos grotões dos campos interioranos e nos meios urbanos
mais afastados dos centros das cidades. Foi a chamada Inserção da Igreja nas
periferias, empenhada na organização das Comunidades Eclesiais de Base entre os
pobres. Trabalhava-se em duas dimensões, a exemplo de Jesus de Nazaré, que
dedicava grande parte de seu tempo à pequena comunidade dos 12 apóstolos, com a
finalidade de servirem de fermento das massas ou multidões.
Paulo Freire, militante cristão
da diocese de Dom Hélder na cidade de Recife, inventou também seu método de
educação começando com essa imensa população mais abandonada e analfabeta. Esse
método se chama de"Educação para a Prática da Liberdade" ou
"Pedagogia do Oprimido". Pelos grotões dos campos, no interior, e na
cidade escalando morros, buscavam-se: as "palavras geradoras" para a
alfabetização e os "temas geradores" para a educação.
As Fichas Catequéticas, com
base no método Paulo Freire, inauguraram no Brasil a chamada Catequese
Libertadora, à qual se seguiu a Teologia da Libertação. Começou-se com Fichas a
serem utilizadas nas aulas de Religião das escolas religiosas e leigas ou públicas
e estatais, porque todas as escolas podiam optar pelo ensino religioso, que era
facultativo. Num segundo momento, estendemos essa Catequese Libertadora às
próprias Comunidades de Base que se constituíam na nova base da Igreja e também
da nova sociedade. A Catequese Libertadora para a América Latina havia sido
urgida na grande Assembleia do episcopado latino-americano realizado na cidade
de Medellín, Colômbia, no ano de 1968.
Material Subversivo
No ano de 1969, em plena
ditadura, os militares de plantão emBrasília, a cada novo ano, sempre na semana
que precedia ao 1° de abril, celebravam em todo o Brasil o aniversário da
"revolução". No ano de 1969, no dia reservado ao Ministério da
Educação, apresentou-se na televisão o próprio titular da pasta, o Coronel
Jarbas Passarinho.
Em longa palestra, com nossas
Fichas Catequéticas em punho, lia partes, comentando sempre. Até o final,
acabou lendo por inteiro duas aulas do feixe de fichas correspondentes à
primeira série ginasial, intituladas Rumo à Terra Prometida. Encucado estava o
general com essa tal de Terra Prometida, porque a linguagem de todas as Fichas,
sempre segundo ele, propositalmente era nebulosa, quando não linguagem cifrada.
Que Terra seria essa? Interrogava a si mesmo e aos telespectadores. Não seria o
paraíso comunista?... Fazendo ilações de todo o tipo, ao fim e ao cabo,
asseverou: Este material é altamente subversivo. Lastimava que colégios
públicos e católicos tivessem a coragem de utilizar tal material didático com
vistas a comunizar o Brasil, corroendo inteiramente o futuro da juventude.
Arrematou referindo-se a Colégios Católicos particulares que até subvenções em
dinheiro do governo recebiam anualmente e cometiam o pecado de ingratidão
utilizando esse material em salas de aula.
Nós, os autores, ficamos
estarrecidos diante do que poderia nos acontecer. Naturalmente a corrida atrás
das Fichasse deu no mesmo instante, a começar pelos biófilos ou amantes da
Vida, como um precioso e raro material para ler e conhecer em profundidade,
motivados que estavam pela ira que tinham contra os militares, e, também, não
poucos, viram no fato uma glória para a Igreja da Catequese e da Teologia da
Libertação. Mas a procura se deu também pelos necrófilos, ou amigos da morte;
estes tendo a polícia como testa de ferro, bateram em todos os colégios que
utilizavam nosso material "altamente subversivo" a fim de recolher
tudo.
Catequese da discórdia
Nossas Fichas, naturalmente,
como Catequese oficial da Igreja tinham o "nada obsta" (nihil obstat)
da autoridade eclesiástica, bem como o "imprima-se" (imprimatur) do
Arcebispo Metropolitano de Porto Alegre. O rebu causado pelas Fichas, simples,
modestas e inocentes que se nos afiguravam, foi de arrepiar. Todo mundo,
através da mídia falada, escrita e televisionada achou por bem entrar com seu
pitaco sobre o assunto. Gente ilustre e gente menos ilustre. Professores e
religiosos. Bispos e padres. Sociólogos e psicólogos. Todo mundo procurou
entrar com sua colher torta no assunto, fosse entendido ou não em Catequese ou
Pastoral.
O grande teatrólogo considerado
o maior, Nélson Rodrigues, se ocupou do assunto a fim de execrar o nosso
material didático. Gustavo Corção, o grande escritor católico, não se conteve e
teceu comentários altamente destrutivos em relação à "Igreja de
Passeatas" à qual ligava nosso material escrito.
Interrogatório
A Nunciatura me chamou para
interrogatório, e nossas Fichas foram parar no Vaticano. Minha prisão e
tortura, ao lado de outros fatores, estou convencido de que aconteceram porque
fui um Catequista da Libertação. Aliás, tinha sido eu que apresentara, em
Medellín, no Congresso Internacional de Catequese, poucos dias antes da
Assembleia dos Bispos, os Princípios Orientadores, bem como o método dessa nova
catequese libertadora, própria para "países subdesenvolvidos", como
eram caracterizadas na época, as nações do continente latino-americano. Nessa
apresentação em Medellín tive a assessoria do teólogo da libertação Hugo
Assmann e o apoio de toda a Equipe de Catequese da CNBB.
IHU On-Line - Em diversos
momentos o senhor já manifestou gratidão a Dom Vicente Scherer, que lhe salvou
a vida quando foi preso em duas ocasiões. Qual a importância de Scherer no
contexto do regime?
Antônio Cechin - Dom Vicente
Scherer foi meu amigo a vida inteira. Conheci-o quando era pároco na Igreja São
Geraldo. Quando morreu seu antecessor Dom João Becker, monsenhor Vicente
Scherer, simples sacerdote, foi eleito pelo cabido da Arquidiocese como Vigário
Capitular na arquidiocese vacante. Quando menos se esperava, a Santa Sé o
escolheu para o episcopado e o nomeou logo como Arcebispo. De simples padre,
Dom Vicente passou a arcebispo.
Como sacerdote e pároco que
comecei a conhecer e depois como arcebispo, Dom Vicente foi sempre um pastor
muito zeloso. A paróquia que ele dirigia, de São Geraldo, tinha um dos melhores
grupos de jovens de toda a arquidiocese que até forneceram vocações sacerdotais
gestados em seu seio. Um exemplo emblemático do extraordinário zelo apostólico
aconteceu uns anos antes da ditadura militar no Brasil.
Francisco Julião, advogado
nordestino, começou a organizar a população pobre do nordeste para a Reforma
Agrária. A mídia dava a impressão que Julião havia "enfogueirado" as
regiões mais pobres do Brasil. Dom Vicente, em reunião com clero e religiosos,
declarou que o comunismo estava incendiando o Norte-Nordeste do Brasil e que
dentro em pouco o comunismo desceria até o Rio Grande do Sul, e nós, como
Igreja, perderíamos nossos viveiros vocacionais de sacerdotes e religiosos
fornecidos pelas catolicíssimas famílias interioranas.
Imediatamente partiu para a
ação. Visitou os párocos de toda a Arquidiocese, dando ordens a que cada pároco
convidasse todos os colonos do município a fim de criarem em todos o seu
sindicato rural. Com essa leva de sindicatos rurais, encarregou o bispo
auxiliar D. Edmundo Kunz para ser o presidente da Federação Agrária Gaúcha -
FAG. Mais tarde, a FAG se transformou em Federação dos Trabalhadores da
Agricultura - FETAG.
IHU On-Line - Qual foi a
postura de Dom Vicente em relação aos religiosos católicos presos e aos demais
presos?
Antônio Cechin - No dia em que
fui preso, depois de a quadra em que eu estava com meus manos ser cercada com
camburões em todas as esquinas e de me introduzirem no DOPS, a casa dos meus
manos foi devassada peloDiretor do DOPS, que se demorou no apartamento das 16
horas até às 22 horas, esmiuçou até a cesta do lixo para juntar papeizinhos
rasgados. Saindo do apartamento com os auxiliares, levou mais de 100 livros da
biblioteca, certamente por achá-los subversivos. Alguns até eram contra o
comunismo. Minha mana, em prantos,
imediatamente correu até a cúria metropolitana a fim de pedir o auxílio
de D. Vicente. Da primeira vez em que estive na cadeia, acabei ficando apenas
dois dias incompletos para, ao final do segundo dia, o próprio secretário de
Segurança do Estado,Coronel Jaime Mariath, em seu próprio automóvel - ele de
motorista e eu de único passageiro -, levar-me até a cúria, moradia de D. Vicente,
e a ele me entregar.
IHU On-Line - Aliás, podemos
entender as figuras de Dom Hélder Câmara e Dom Vicente Scherer como antípodas?
No que se assemelhavam e no que se diferenciavam?
Antônio Cechin - Os dois, Dom
Hélder e Dom Vicente, tinham posições muito diferentes em relação não só à
ditadura militar, mas também em relação à Pastoral, à própria teologia e à
Catequese.
A qualidade boa de Dom Vicente
é que não era "espiculão", como diziam os jovens da JEC com os quais
eu trabalhava. Isto é, ele deixava trabalhar sem procurar vigiar ninguém.
Quando, em um colossal êxodo rural, chegaram a Canoas nada menos de 13 mil
operários para a construção do Polo Petroquímico de Triunfo, enchendo todas as
periferias da cidade, em beiras de ruas e estradas. Então, no Natal de 1979,
ocupamos os latifúndios pertencentes aos herdeiros do sesmeiro Matias Velho,
local que o padre vigário não botava o pé, considerado por ele como invasão e
roubo de terra do próximo.
Na visita que Dom Vicente fazia
uma vez a cada ano aos padres, ele me mandou avisar o vigário que, no domingo
seguinte, o próprio Dom Vicente iria pessoalmente celebrar a missa para os
"invasores" na capela que havia sido levantada em mutirão. Mandou
ainda que eu advertisse o pároco para que estivesse pessoalmente ao lado dele
na celebração.
Pastor zeloso
Para mim, Dom Vicente foi um
Pastor zelosíssimo daquilo que hoje considero o modelo europeu de catolicismo
que chegou da Europa através de Portugal em 1500. Modelo esse que se esgotou
com o Concílio Vaticano II. Dom Hélderfoi o iniciador de um novo modelo de
Igreja tipicamente latino-americano, aprovado no Concílio Vaticano II e a
partir desse evento, convocado por João XXIII. A este novo modelo de Igreja
deve corresponder uma nova catequese, uma nova teologia, um novo tipo de vida,
religião, etc. Estamos hoje bem avançados no mundo a ponto de Papa Francisco
ser hoje o primeiro papa do nosso novo modelo, da Igreja da Catequese e
Teologia da Libertação.
Dom Vicente foi um excelente
sacerdote e arcebispo em condições de dar um salto, porque já diziam os
latinos, "a natureza não dá saltos" (natura non facit saltus). Dom
Hélder foi o iniciador da Igreja do Brasil e com ele retornamos ao modelo de
Igreja dos Primórdios, porque "Deus é para nós o único absoluto, porém o
absoluto de Deus são os pobres", e John Sobrino diz que nossa missão como
cristão é de despregar da cruz os pobres de hoje, na qual estão crucificados.
IHU On-Line - Qual foi a
importância dos movimentos de resistência popular capitaneados pela Igreja, organizados
pela Ação Católica?
Antônio Cechin - A caminhada
dos movimentos de resistência da Ação Católica Epecializada, isto é, dos jovens
agricultores, estudantes secundaristas, independentes (profissões liberais),
operários e universitários, apesar de ter sido uma caminhada de muito
sofrimento, foi também de muita alegria e de grande entusiasmo. Há uma frase
que ouvi na França e que nunca esqueci: "Quando a juventude perde o seu
entusiasmo, o mundo bate os dentes de frio". As saudades desses movimentos
de muita militância são enormes. Foram a base da Igreja da Libertação, com suas
espetaculares CEBs , nova base de Igreja e de nova sociedade; foram a base do
Partido dos Trabalhadores, que foi fundado por esses movimentos e só depois é
que se somaram outras forças a esse partido que transformou o Brasilmedieval em
que vivíamos um Brasil da modernidade.
É uma pena que os percalços da
Caminhada, em grande parte devido ao hiato na continuidade atribuído aos dois
papas: João Paulo II e Bento XVI, nos tenha interrompido o processo, porque
lembro quando foi dado por encerrado oVaticano II, lendo os documentos
produzidos, dizíamos: "o Vaticano está lindo, maravilhoso porque ajustou a
Igreja Universal ao que até hoje construímos no Brasil. Absolutamente nada de
novo acima do que nós conseguimos estar vivendo aqui".
Saudade
Não raro me encontro com jovens
daqueles tempos memoráveis, hoje gente de idade, e não encontrei um só que não
esteja com saudade com expressões do gênero: "A JEC me deu embocadura para
a vida inteira! Que maravilha!". O mesmo não acontece com quem foi de
movimentos outros de caráter conservador, que se ocupavam exclusivamente do
religioso propriamente dito sem abertura alguma para o social, que acima
caracterizamos como do modelo vindo da Europa no início do Brasil propriamente
dito. Pergunto hoje a alguém: Foste cursilhista no passado, que tal?! Como vês
hoje aqueles tempos e com aqueles movimentos? Em geral todos me respondem que
têm vergonha de ter perdido tempo com aquele tipo de Igreja.
IHU On-Line - Como avalia o
trabalho da Comissão Nacional da Verdade? Por que resgatar a memória desse
período é, mais que um gesto político, uma maneira de valorizar a liberdade e a
vida?
Antônio Cechin - Acho
espetacular que tenhamos chegado finalmente à Comissão Nacional da Verdade,
apesar do rugir de dentes das forças armadas, hoje bem aposentadas
monetariamente, mas com as consciências sempre mais indormidas e
sobressaltadas. Quem não tem história, não viveu. Apenas vegetou. Sem processo
histórico, não há nem salvação, porque a História da Salvação é sinônimo de
Bíblia, e o nosso Deus dos cristãos é um Homem, oJesus de Nazaré, com uma
Caminhada Histórica, a mais fantástica e inimaginável do mundo.
Fonte: Brasil de Fato
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