por Alex Bretas
Vasconcelos
14/09/2014
Como desenvolver um projeto de
aprendizado autônomo e consistente, estabelecendo redes de diálogo e
colaboração com quem acredita em conhecimento além dos certificados
Kathryn começou a ter coceira
nas ideias. Mais especificamente, ela alimentava uma curiosidade cada dia maior
em relação a carros esportivos: na verdade, ela queria comprar um Fiero antigo
e restaurá-lo das rodas ao teto, um trabalho que pelas contas de Kathryn
demoraria uns quatro anos. Argumentos pensados, convenceu os pais a deixarem-na
comprar o carro com um dinheiro que ela mesma havia economizado.
Ao longo dos trabalhos de
restauração, Kathryn sentiu-se inspirada pelo seu pai, que sempre a
acompanhava, e por mensagens que trocava num fórum que reunia entusiastas do
Fiero na internet. Dia após dia, ela construía, sujava as mãos, e depois as
limpava para ler coisas sobre funilaria, pintura, sistemas elétricos e
mecânicos. Como não poderia deixar de ser, conciliava a reforma do automóvel
com várias outras atividades, como frequentar a escola, jogar bola e trabalhar
como babá.
Depois de algum tempo, os
amigos que Kathryn fez no fórum deixaram de somente postar elogios admirados e
mensagens de motivação e passaram a perguntá-la seriamente sobre assuntos
relacionados à restauração do Fiero. Ela começou a ser reconhecida pelo que
aprendia, e isso devido a um projeto autônomo que partiu de um desejo corajoso.
Assim como Kathryn, que ousou
colocar no mundo a sua curiosidade mais genuína, eu também o fiz. E estou
arriscando chamar isso de doutorado informal. Toda essa história começou com o
André Gravatá, que passou a utilizar o termo para nomear o projeto de
aprendizagem autônomo que criara para si. O doutorado, aquele nível que
certifica as pessoas que já podem inovar no mundo acadêmico, quando informal,
aponta numa outra direção: todos já carregam consigo a sabedoria e a
criatividade necessárias para inovar, e podem fazer isso sem depender da
universidade.
Simples, só não é fácil. Yaacov
Hetch – educador israelense e estudioso da educação democrática – diz que muita
gente acha que a vida das crianças que estudam nas escolas democráticas não
requer muito esforço. Elas não têm que se submeter a aulas e disciplinas,
mas precisam sustentar-se num caminho
autônomo de aprendizagem, escolhendo o que e como aprender, em interação com o
mundo. Yaacov afirma exatamente o oposto do que tantas pessoas acreditam:
buscar uma área de interesse, agir e refletir de forma auto coordenada demanda
uma enorme reserva de força interior. E é exatamente assim com o doutorando
informal: para seguir na espiral de aprendizagem que mais lhe encanta, é
preciso empreender-se continuamente.
Olhando para o meu processo, a
partir do momento em que tomei a decisão de seguir pelo doutorado informal,
mundos se abriram. Criei o Educação Fora da Caixa, um projeto de investigação
cujo objetivo é irradiar aprendizagens a respeito de experiências, histórias e
autores relacionados à educação de adultos. Duas palavras têm sido guias nessa
jornada: curiosidade e autonomia. Assim, a opção de conduzir a pesquisa como um
doutorado informal ficou bastante coerente. Compreender um pouco mais esse
formato é uma das coisas que quero fazer no livro que será a principal entrega
do projeto. À medida que interajo com pessoas que se interessam pela proposta,
o doutorado informal vai ganhando alguns contornos.
Até o momento, entendo-o de
dois jeitos. O primeiro é o doutorado informal como prática ou abordagem, e o segundo
é o seu valor como metáfora. O lado prático tem a ver com como as pessoas que
têm começado seus doutorados informais estão fazendo isso. Já estou começando a
mapear essas práticas, e muitas possibilidades interessantes têm surgido –
mentorias, grupos de diálogo, comunidades de prática, jornadas de aprendizagem,
viagens, canais e redes de compartilhamento na internet, imersões, enfim, meios
para materializar a intenção de aprender (e vivenciar) algo.As metodologias
comumente utilizadas no meio acadêmico também podem servir ao doutorado
informal, a questão é não se restringir a elas. Não colocar o método científico
nem os resultados da ciência acima de qualquer outro domínio do conhecimento
humano é justamente no que Paul Feyerabend, filósofo austríaco, acreditava. O
meu entendimento é que o doutorado informal segue nesse mesmo sentido: os
caminhos são múltiplos, assim como as verdades.
O doutorado informal também
pode ser visto como uma metáfora. Doutor, no Brasil, até bem pouco tempo eram
os engenheiros, médicos e advogados. Em muitos lugares ainda se diz e se
acredita nisso, quem “pode” é tratado como doutor. Tião Rocha, educador
mineiro, conta que no Vale do Jequitinhonha, norte de Minas Gerais,
empoderamento virou “empodimento”. “Ah, então quer dizer que nóis pode?” O
doutorado informal surge também para promover empodimentos de aprendizagem:
todos podem fazer um doutorado, mas não precisa ser aquele, da universidade,
pode ser um que aproveite da sua curiosidade mais viva e emerja da sua
realidade, e então, subitamente, aquilo vai fazer sentido pra você. Aqui, vale
destacar que o doutorado informal não pretende imitar (nem rivalizar com) o
doutorado acadêmico; antes, trata-se de um outro universo que sabe conviver com
o mundo das instituições.
Neste novo território que se
apresenta, cada um escolhe como vai trilhar seu caminho e como vai entregar os
frutos do seu trabalho ao mundo. Pode ser livro, dança, tecnologia, política
pública, exposição, metodologia e até mesmo tese.
Mas, quem vai atestar que o
resultado obtido pelo meu doutorado informal é bom, ou mesmo válido? Quem vai
poder me certificar como especialista no assunto que escolhi?
Augusto de Franco diz que a
árvore vai sendo reconhecida pelos seus frutos, e não por um certificado
emitido pela corporação dos botânicos. Cada vez mais, o que está em jogo numa
contratação, por exemplo, não são os diplomas que uma pessoa possui, e sim a
qualidade de seus frutos. Se eu provo e gosto, a árvore é boa e seus frutos são
válidos.
Não questiono as razões que
levaram ao surgimento das instituições que certificam o ensinamento, mas o que
temos vivido hoje aponta para um resgate da nossa liberdade e responsabilidade
para valorar produções e pessoas por nós mesmos.
O doutorado informal tem sido
cocriado a diversas mãos e a ideia é que continue sendo assim. No dia 4 de
agosto, realizamos o primeiro encontro em São Paulo, e a intenção é fazermos
mais conversas. Tenho trabalhado no formato dos Círculos de Doutorandos
Informais (CDIs), espaços de colaboração que promovem trocas e apoio mútuo para
pessoas que já começaram um doutorado informal ou têm uma ideia, questão ou
desejo que gostariam de destrinchar de forma autônoma. Também criamos um grupo
aberto no Facebook, disponível neste link.
Enquanto nós desenvolvemos, por
meio do par reflexão-ação, a ideia do doutorado informal, pessoas como Kathryn
já captaram a essência desse caminho mais livre de aprendizagem. Recentemente,
ela conseguiu seu primeiro emprego formal e começou a fazer faculdade, mas
continua trabalhando firme no seu Fiero. Alguém duvida que ela vai conseguir
chegar lá? Eu acredito que ela já chegou. Que tal aprendermos com ela a coçar
nossas ideias com vontade, como dizia Rubem Alves?
Fonte: Outras
Palavras
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