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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A CIDADANIA NO CONTEXTO DE UM CARNAVAL QUE TEIMA EM ACONTECER

Tânia Regina Braga Torreão Sá*
“Cidadania (do latim, civitas, "cidade"). É o conjunto de direitos e deveres ao qual um indivíduo está sujeito em relação a  sociedade em que vive. O conceito de cidadania sempre esteve fortemente "ligado" a  noção de direitos, especialmente os direitos políticos, que permitem ao indivíduo intervir na direção dos negócios públicos do Estado, participando de modo direto ou indireto na formação do governo e na sua administração, seja ao votar (direto), seja ao concorrer a um cargo público (indireto)”. (Wikepedia)

Em face dos recentes acontecimentos que tomam os noticiários dos meios de comunicação brasileiros, não somente relativos às greves da polícia militar da Bahia e Rio de Janeiro, mas a insistência de que o carnaval nesses estados deva ocorrer, sob qualquer condição, ainda que essa esteja associada a colocar nas ruas, para realizar o patrulhamento ostensivo, homens preparados dentro da filosofia de treinamento totalmente diferença daquela que promove a segurança pública, e, também, em face do que entendo ser viver num estado democrático de direito, andei cá com meus botões refletindo sobre o conceito de cidadania e me deparei com uma reflexão do mestre Milton Santos que insiste em ser recorrente na minha mente. Essas palavras eram: “no Brasil não há cidadãos, nunca houve, porque a classe média não quer direitos, quer privilégios”. E é por concordar com a acidez/lucidez dessa reflexão que conclamo os leitores que tenho a também refletirem a respeito.
De fato, se reconhecermos que o conceito de cidadania historicamente sempre esteve ligado ao poder econômico, então poderemos compreender melhor o que Milton Santos quer dizer.
É uma tentação quase irresistível para mim, escarafunchar a história etimológica da palavra cidadania, que desde a Grécia está associada – como disse no parágrafo anterior – ao poder econômico. Não basta ir longe para atestar essa associação. Basta pensarmos em quem era o civitas da Antiguidade Clássica? Basta pensar, no que lhes fazia ‘ter direitos’?
Na sociedade contemporânea – muitos (felizmente), irão discordar de mim – não me parece que o conceito de cidadania tenha evoluído tanto assim, a ponto de ‘rasurar’ as vinculações criadas desde o período da Antiguidade Clássica.
Para explicar melhor o que quero dizer, recorro a alguns exemplos captados a partir de minha experiência docente, que se move pelo desejo, de tirar os meus alunos e alunas de suas ‘zonas de conforto’, pois, compreendo ter a educação, um poder imensurável de desestabilidade das certezas.
E porque educar envolve questionar a verdades estabelecidas, quando me sinto também provocada a debater o assunto, inicio a minha fala lançando aos meus alunos a proposta de responderem o que significa ser cidadão.
Nesses 14 anos de docência no ensino superior nunca, em nenhuma das muitas turmas que tive o prazer de lecionar, deixei de ouvir a costumeira resposta: “eu sou cidadão porque pago os meus impostos”, e é aí que ‘a porca torce o rabo’, porque a aderência aos sistemas formais de ligação ao estado democrático, que assegura aos cidadãos uma pretensa segurança em relação a assunção de direitos e deveres, nem sempre depende da vontade autônoma da parcela pobre da população. Essa vontade é consuetudinária das condições econômicas, que não permitem a muitos sobreviver para além de assegurar o que é mínimo. Sendo mais direta, em muitos casos as pessoas pobres não arbitram sobre a cidadania porque lhes faltam condições financeiras para isso, pois, se trata de realizar a duríssima escolha entre colocar o pão de cada dia na mesa e construir as condições essenciais para o alcance da cidadania, vista sob o ponto de vista do liberalismo econômico, é sempre bom ressaltar.
Assim, o problema de criar conexões entre o conceito de cidadania e o pagamento de impostos, reside justamente no prestigio, no destaque, à segregação econômica a qual essa concepção se imbui, afinal (vamos combinar!), ninguém é pobre porque deseja sê-lo, ninguém se segrega acha positivo se segregar.
Mas há uma interrogação nesse texto que ainda precisa ser respondida: o que tudo isso tem haver com o carnaval baiano e carioca, nas condições que me parece, ele será promovido nesse ano?
Antes de ‘arquitetar’ a minha resposta, no entanto, quero esclarecer que não sou do tipo de pessoa que se ressente em relação a meu passado “de timbaleira”, cujas condições físicas, não permitem mais acompanhar o frenesi do “todo mundo pro lado de lá, todo mundo pro lado de cá”, durante as quase 4 e 1/2, 5h do trajeto por onde desfila o meu bloco do coração. Também não sou do tipo de intelectual enfezada, que se senta atrás da mesa e se põe a criticar o carnaval, posicionando-o enquanto ópio do povo, como se o povo também, não precisasse de ópio. Sou do tipo que já pulou muito atrás do trio elétrico e que hoje, depois de fraturas múltiplas na tíbia e perônio, ainda se sacode toda quando vê a turma se acabar atrás do trio elétrico, que afinal, só não carrega quem já morreu.
No carnaval desse ano, entretanto, há novas variáveis a serem consideradas: a polícia militar está em greve e face à necessidade do patrulhamento ostensivo das cidades aonde se realiza a folia momesca, um substituto improvisado, despreparado, será posto em seu lugar.
Não será difícil prever o quanto de acréscimo aos índices de violência se dará durante a realização desse evento, sob tais condições. Mas, ainda assim, sem que me cause espanto, surpresa, algumas entidades carnavalescas – não coincidentemente as mais ricas – insistem na realização da festa, despudoradamente alegando que se tal não acontecesse haveria prejuízos monumentais a economia do estado. Mas e o valor da vida humana, aonde fica?
O exército brasileiro rege-se por doutrina diferenciada das polícias militares. Enquanto as polícias regulam-se pelo comprometimento com a “preservação da ordem pública, dos direitos do cidadão e do estado de direito” (pm.ba.gov.br), a doutrina militar do exército tem “preparado (organizado, equipado, instruído e desenvolvido) as forças morais para a eventualidade de (destaco!) conflitos e se empregado em guerras”.
Sendo escancaradamente irônica, não posso deixar de admitir que os carnavais brasileiros de há muito se assemelham com guerras, aonde o que está em disputa é, principalmente, o espaço, desde os midiáticos até os físicos. Por isso, ainda que as polícias militares se presentifiquem nos espaços aonde a festa acontece, cumprindo o seu papel coibitivo ao cometimento de atos de violência, é impossível fechar todas as portas dessa vista que a natureza humana navega entre a sustentável leveza do cidadão dócil e a selvagem natureza da fera que nos fustiga a (re) agir.
Autorizar uma força descomunal, armada e preparada para ‘outros finalidades’, senão, as de promover a segurança pública a policiar um evento dessa natureza, portanto, flerta perniciosamente com a irresponsabilidade e a indiferença social. E tudo isso, porque supondo a continuidade da greve da polícia militar “haveriam prejuízos que seriam monumentais para a economia do estado se o carnaval não acontecesse”.
Não tenho a ilusão da aderência as minhas opiniões. Se pudéssemos realizar uma pesquisa, aliás, perguntando a população pobre de Salvador se desejam que o carnaval aconteça, mesmo sem a presença da polícia militar nas ruas, a resposta dada seria esmagadoramente sim. Não os culpo por isso! Afinal, ainda que as estatísticas os incluam entre os mais agredidos nessas ocasiões; ainda que os pobres ofereçam a ricos e a classe média, que se endivida para comprar o abadá do chicletão, o triste espetáculo de suas misérias, que chegam através do banqueteamento que realizam com os restos das bebidas, quando ansiosos recolhem as latinhas de alumínio que lhes assegura migalhas por dia para pegar o buzú ou tomar uma latinha também, o pobre é a principal vítima dessa máquina louca de produção de ilusões que o carnaval potencializa.
 E aí, enquanto a classe média e os ricos vão ao paraíso dos camarotes tomados por futilidades all include, que maquila tentando apagar dos rostos qualquer traço que remeta brevemente a pobreza, os pobres estão na pipoca da vida. E eu?! Eu estou aqui me valendo das palavras e brigando à minha maneira para que as cinzas revoem, atinjam os olhos dos pobres, causando revoltas pela inaceitação e, finalmente, se espalhem pelo chão, limpando os olhos dos pobres da lente pesada – também conhecida como política do pão e circo – que os imobiliza ante tantas desigualdades.
* Professora do DCHL/UESB.

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