por Renato Souza
sex, 27/06/2014
Doença sempre foi algo
associado à anormalidade, à disfunção, a tudo aquilo que foge ao funcionamento
regular. Na área médica, a doença é identificada por sintomas específicos que
afetam o ser vivo, alterando o seu estado normal de saúde. A saúde, por sua vez,
identifica-se como sendo o estado de normalidade de funcionamento do organismo.
Numa analogia com os organismos
biológicos, o sociólogo Émile Durkheim também sugeriu como identificar saúde e
doença em termos dos fatos sociais: saúde se reconhece pela perfeita adaptação
do organismo ao seu meio, ao passo que doença é tudo o que perturba essa
adaptação.
Então, ser saudável é ser
normal, é ser adaptado, certo? Não necessariamente: apesar de Durkheim, há quem
considere que do ponto de vista social, ser normal demais pode também ser
patológico, ou pode levar a patologias letais.
Os pensadores alternativos
Pierre Weil, Jean-Ives Leloup e Roberto Crema chamaram isto de Normose, a
doença da normalidade, algo bem comum no meio acadêmico de hoje. Para Weil, a
Normose pode ser definida como um conjunto de normas, conceitos, valores,
estereótipos, hábitos de pensar ou de agir, que são aprovados por consenso ou
por maioria em uma determinada sociedade e que provocam sofrimento, doença e
morte. Crema afirma que uma pessoa normótica é aquela que se adapta a um
contexto e a um sistema doente, e age como a maioria. E para Leloup, a Normose
é um sofrimento, a busca da conformidade que impede o encaminhamento do desejo
no interior de cada um, interrompendo o fluxo evolutivo e gerando estagnação.
Estes conceitos, embora
fundados sobre um propósito de análise pessoal e existencial, são muito
pertinentes ao que se vive hoje na academia. Aqui, pela Normose não é apenas o
indivíduo que adoece, que estagna, que deixa de realizar o seu potencial
criador, mas o próprio conhecimento. E não apenas no Brasil, também em outras
partes do mundo.
Peter Higgs, Prêmio Nobel de
Física de 2013 disse recentemente que não teria lugar no meio acadêmico de
hoje, que não seria considerado suficientemente produtivo, e que, por isso,
provavelmente não teria descoberto o Bosão de Higgs (a “partícula de Deus),
descrito por ele em 1964 mas somente comprovado em 2012, quase 50 anos depois,
com a entrada em funcionamento de uma das maiores máquinas já construídas pelo
homem, o acelerador de partículas Large Hadron Collider. Higgs contou ao The
Guardian que era considerado uma “vergonha” para o seu Departamento pela baixa
produtividade de artigos que apresentava, e que só não foi demitido pela possibilidade
sempre iminente de um dia ganhar um Nobel, caso sua teoria fosse comprovada.
Ele reconheceu que, nos dias de hoje, de obsessão por publicações no ritmo do
“publique ou pereça”, não teria tempo nem espaço para desenvolver a sua teoria.
À sua época, porém, não só o ambiente acadêmico era outro como ele próprio era
um desajustado, um anormal, uma espécie de dissidente que trabalhava sozinho em
uma área fora de moda, a física teórica expeculativa. Então, sua teoria é
também fruto desta saudável “anormalidade”.
A mim, embora não surpreendam,
as declarações de Higgs soam estarrecedoras: ou seja, com os sistemas
meritocráticos de avaliação de hoje, que privilegiam a produção de artigos e
não de conhecimentos ou de pensamentos inovadores, uma das maiores descobertas
da humanidade nas últimas décadas, que rendeu a Higgs o Nobel em 2013,
provavelmente não teria ocorrido, como certamente muitos outros avanços
científicos e intelectuais estão deixando de ocorrer em função dos sistemas
atuais de avaliação da “produtividade em pesquisa”. É a Normose acadêmica
fazendo a sua maior vítima: o próprio conhecimento.
Aliás, nunca se usou tanto a
autoridade do Nobel para apontar os desvios doentios do nosso sistema acadêmico
e científico como em 2013. Randy Schekman, um dos ganhadores do Nobel de
Medicina deste ano, em recente artigo no El País, acusou as revistas Nature,
Science e Cell, três das maiores em sua área, de prestarem um verdadeiro
desserviço à ciência, ao usarem práticas especulativas para garantirem seus mercados
editoriais. Schekman menciona, por exemplo, a artificial redução na quantidade
de artigos aceitos, a adoção de critérios sensacionalistas na seleção dos
mesmos e um absoluto descompromisso com a qualificação do debate científico. E
afirmou que a pressão para os cientistas publicarem em revistas “de luxo” como
estas (de alto impacto) encoraja-os a perseguirem campos científicos da moda em
vez de optarem por trabalhos mais relevantes. Isto explica a afirmação de Higgs
sobre ser improvável a descoberta que lhe deu o Nobel no mundo acadêmico de
hoje.
O próprio Schekman publicou
muito nestas revistas, inclusive as pesquisas que o levaram ao Nobel:
diferentemente de Higgs, que era um dissidente, Schekman também já sofreu de
Normose. Porém, agora laureado, decidiu pela própria cura e prometeu evitar
estas revistas daqui para adiante, sugerindo não só que todos façam o mesmo,
como também que evitem avaliar o mérito acadêmico dos outros pela produção de
artigos. Foi preciso um Nobel para que se libertasse da doença.
A atual Normose acadêmica se
deve à meritocracia produtivista implantada nas universidades, cujos
instrumentos, no Brasil, para garantir a disciplina e esta doentia normalidade
são os sistemas de avaliação de pesquisadores e programas de pós-graduação,
capitaneados principalmente pela CAPES e CNPq. Estes sistemas têm transformado,
nas últimas décadas, docentes e alunos em burocráticos produtores de artigos,
afastando-os dos reais problemas da ciência e da sociedade, bem como da busca
por conhecimentos e pensamentos realmente novos. A exigência de produtividade é
um estímulo ao status quo, obstruindo a criatividade, a iniciativa, o senso
crítico e a inovação, pois inovar, criar, empreender, fugir ao normal pode ser
perigoso, pode ser incerto, pode ser arriscado quando se tem metas produtivas a
cumprir; portanto, não é desejável: o mais seguro é fazer “mais do mesmo”, que
é ao que a Normose acadêmica condenou as universidades e seus integrantes ao
redor do mundo.
Eu escrevi
em um artigo de 2013, que a meritocracia leva a uma ilusão de eficiência e
progresso que não podem se realizar, porque as meritocracias modernas são
burocracias. Como bem ensinou Max Weber, a burocracia é uma força modeladora
inescapável quando se racionaliza e se regulamenta algum campo de atividade,
como acontece no sistema científico atual. Para supostamente discriminar por
mérito pessoas e organizações acadêmicas, montou-se um tal sistema de regras,
critérios avaliativos, hierarquias de valor, indicadores, etc., que a
burocratização das ações acadêmicas tornou-se inevitável. Agora é este sistema
que orienta as ações dos acadêmicos, afastando-os de seus próprios valores,
desejos e convicções, para agirem em função da conveniência em relação aos
processos avaliativos, visando controlar os benefícios ou penalidades que eles
impõem. Pessoas sob regimes de avaliação meritocráticos se tornam burocratas
comportamentais; e burocratas, como se sabe, pela primazia da conformidade organizacional
a que se submetem, tornam-se inexoravelmente impessoalistas, formalistas,
ritualistas e avessos a riscos e a mudanças. Tornam-se normóticos, preferindo,
no caso da academia, uma produção sem significado, sem relevância, sem
substância inovadora porém segura, a aventurarem-se incertamente em busca do
novo.
Agora, depois de já ter escrito
isto naquele artigo, descubro que o Nobel de Medicina de 2002, o sul-africano
Sydney Brenner, em entrevista de fevereiro deste ano à King’s Reviw, afirmou
exatamente o mesmo. Dentre outras coisas, disse ele que as novas ideias na
ciência são obstruídas por burocratas do financiamento de pesquisas e por
professores que impedem seus alunos de pós-graduação de seguirem suas próprias
propostas de investigação. É ao menos alentador perceber que esta realidade
insólita não é apenas uma versão tupiniquim da busca tardia e equivocada por um
lugar ao sol no campo acadêmico atual, mas uma deformação que assola também os
“grandes” da arena científica mundial. E também constatar que os laureados com
a distinção do Nobel tem se percebido disto e denunciado ao mundo.
De certa forma, todos na
academia sabem que estes sistemas de avaliação acadêmicos têm levado a um
produtivismo estéril, mas isto não tem sido suficiente para mudar nem as
condutas pessoais, nem as diretrizes do sistema, porque a Normose é uma doença
coletiva, não individual. Ela advém da necessidade de legitimação do indivíduo
frente ao sistema de regras, normas, valores e significados que se impõe a ele.
Por isto é que o pesquisador australiano Stewart Clegg afirmou, certa vez, que
“pesquisadores que buscam legitimação profissional podem com muita facilidade
ser pressionados a aprender mais e mais sobre problemas cada vez mais
desinteressantes e irrelevantes, ou a investigar mais e mais soluções que não
funcionam”.
Mas agora me advém uma questão
curiosa: por que tantos Nobéis tem denunciado este sistema? Creio que porque do
alto da distinção recebida, eles já não tem mais nenhum compromisso com a
meritocracia acadêmica, e podem falar do dano que ela causa às ideias realmente
inovadoras que, inclusive, podem levar à láurea. Mas também porque o Nobel foge
à lógica da meritocracia, ele não é um mecanismo meritocrático, portanto, não é
burocrático. Ele é até mesmo político, antes de ser meritocrático e
burocrático! É um reconhecimento de “mérito” sem ser uma “cracia”. Ou seja, não
há, através dele, um sistema de governo das atividades científicas, e por isso
ele não leva a uma racionalidade formal, pois ninguém em consciência normal
pautaria sua atividade acadêmica quotidiana pela improvável meta de, talvez já
na velhice, ganhar o Nobel; e mesmo que tivesse este excêntrico propósito como
pauta, teria que fugir da meritocracia que governa os sistemas científicos
atuais para chegar a um lugar reconhecidamente distinto, pois ser normal não
leva ao Nobel.
Mas este não é o mundo da vida
dos seres acadêmicos de hoje, aqui vivemos em uma meritocracia burocrática, e
num contexto assim, pouco adiantam as advertências da editora-chefe da revista
Science, Marcia McNutt, publicados no Estadão, de que a ciência brasileira precisa
ser mais corajosa e mais ousada se quiser crescer em relevância no cenário
internacional. Segundo ela, para criar essa coragem é preciso aprender a correr
riscos, e aceitar a possibilidade de fracasso como um elemento intrínseco do
processo científico. Mas quando as pessoas são penalizadas pelo fracasso, ou
são ensinadas que fracassar não é um resultado aceitável, elas deixam de
arriscar; e quem não arrisca não produz grandes descobertas, produz apenas
ciência incremental, de baixo impacto, que é o perfil geral da ciência
brasileira atualmente, segundo ela. É a Normose acadêmica “a brasileira” vista
de fora.
Somos todos normóticos em um
sistema acadêmico de formação de pesquisadores e de produção de conhecimentos
que está doente, e nossa Normose acadêmica tem feito naufragar o pensamento
criativo e a iniciativa para o novo em nossas universidades. Sem eles, porém,
não há futuro significativo para a vida intelectual dentro delas, nem na
ciência nem nas artes.
Texto de Renato Santos de
Souza, publicado no E-Book: NASCIMENTO, L.F.M. (Org.) Lia, mas não escrevia
(livro eletrônico): contos, crônicas e poesias. Porto Alegre: LFM do
Nascimento, 2014.
Fonte: Jornal
GGN
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