especial com David Harvey.
Philip Stalhandske, do jornal
sueco Lundagård, entrevistou David Harvey durante sua recente visita à
Universidade de Lund. Um Harvey decepcionado pela falta de um movimento
estudantil radical: “Acho que os estudantes têm que se auto-organizar”.
David Harvey descreve o segundo
volume d’O capital de Karl Marx como “o livro mais chato que já escrito”. Sua
obra teórica, uma introdução um pouco mais interessante, começou com uma
reflexão sobre os aspectos contraditórios do capitalismo, cujo resultado é o
livro Dezessete contradições e o fim do capitalismo (Boitempo, no prelo).
Depois de um dia no qual
apresentou seu livro em um auditório lotado e fez parte da banca de uma tese,
Lundagård se reúne com um David Harvey ligeiramente cansado no Grand Hotel de
Lund.
O senhor afirmou em sua
apresentação que “os estudantes endividados não protestam”. Por que pensa dessa
forma e quem o senhor acredita que se beneficia disso?
Bem, trata-se de uma afirmação
geral, não tenho provas empíricas. Mas é certo que os donos de moradias que
estão endividados se mostram politicamente ativos, seguindo um rumo mais
reacionário. Acredito que é bastante notável que parte do aumento das
matrículas, que provocou no início a indignação estudantil e sua reação (na
Grã-Bretanha), não tenha gerado um movimento estudantil durável. Minha
conclusão, que tem muito de conjectura e muito de bem informada, é que o
endividamento que está dominando o corpo estudantil tem sido, para começar,
aceito, e que ao mesmo tempo é algo que vai manter as pessoas em uma situação
de servas de suas dívidas durante uma considerável parte de sua vida.
O senhor pensa então que esse
endividamento criou ou criará um corpo estudantil mais reacionário?
Não sei se criará um corpo
estudantil mais reacionário. Desde já, não desencadeou o grau de ativismo que
eu esperava que fosse produzido. Do mesmo modo, na Grã-Bretanha, a imposição
das taxas de matrícula não geraram uma campanha a longo prazo de ampla agitação
em prol da suspensão dessas taxas. Penso que, se neste caso tivesse havido uma
agitação massiva, teria sido muito difícil para o Partido Trabalhista não ter
dado seu respaldo à abolição das taxas. Acredito, de novo, que faz parte dessa
aquiescência a aceitação da mercantilização da educação superior, à qual eu
acredito que deveria se ter resistido com mais contundência.
O senhor mencionou a
importância de fazer a informação chegar e de que “poderia ser que tivéssemos
um movimento em nossas mãos” se essa informação tivesse uma ampla difusão. Qual
deveria ser o método para isso e a quem ela deveria se dirigir?
Acho que os próprios estudantes
têm que se auto-organizar e há sinais disso – pequenos grupos de estudantes que
tentam reiteradamente gerar um movimento. Mas minha impressão é de que
enfrentam uma enorme indiferença por parte da grande massa do corpo estudantil.
Mas a informação bastará ou
existe uma “necessidade”, se é que esta é a palavra correta, de se empurrar
ainda mais a população antes de se formar um movimento?
Há certas condições necessárias
para que um movimento surja. Uma condição necessária, que eu acredito que a
liderança de esquerda não cumpre, consiste em uma certa visão das alternativas.
Muita gente perguntará: “Onde está a alternativa?” e “Que tipo de visão o
senhor tem?”. Agora, oferecer alguma visão de algum tipo é um requisito prévio
muito importante para qualquer movimento, mas isso não garante um movimento.
Minha visão dos processos de
mudança social é de que precisa de mudanças simultâneas em muitas dimensões –
entre elas, de nossas concepções mentais do mundo. E nossas concepções mentais
do mundo se viram encurraladas pela forma como a atividade de oposição se
estruturou. Se você quer denunciar a discriminação, tem que mostrar o prejuízo
e a intencionalidade. A política de vitimização não é uma boa política de
solidariedade. As vítimas podem se apresentar e pode ser que algumas contem um
dramalhão qualquer que baste para conseguir compensações ou remédios. Mas não
se faz nada para a grande massa da população, de modo que a história do dramalhão
se converte na principal forma de política ou o remédio de alguns males.
O que me parece que a esquerda
não entende é que ela está sendo encurralada nessa classe de oposição – o que,
de fato, a torna bastante impotente quando se fala de movimentos solidários de
massas. Há uma luta por encontrar formas de expressar uma oposição massiva a um
sistema que formulou uma política na qual as únicas possibilidades consistem
nesse tipo de política do vitimismo, o que não levará a nenhuma mudança
radical. Uma vez que entendamos a sofisticação do encurralamento neoliberal
dessa maneira, temos que aprender formas de transpô-lo, mas não acredito que
tenhamos aprendido isso até este momento.
O contra-argumento mais comum
por parte da esquerda em relação ao tipo de política que o senhor defende é que
essa solidariedade humanitária é comumente destinada aos homens brancos.
Acredito que haja sólidas
razões para sermos antirracistas e levarmos muito a sério as políticas de
gênero. A dificuldade está no fato de que se você não presta atenção ao modo
como o “motor econômico” do capitalismo atinge as pessoas, está perdendo boa
parte do que é mais importante. Por exemplo, pode ser que haja quatro ou seis
milhões de pessoas nos Estados Unidos que perderam suas casas, e um montante
desproporcional das mesmas é imigrante, ou de comunidades afro-americanas, ou
mulheres. Mas o impulso real que levou ao crack não pode ser explicado
analisando raça e gênero. Suas repercussões se infiltraram na raça e no gênero,
mas suas origens não.
Quais são as possibilidades das
universidades enquanto espaços de luta?
Há pessoas que às vezes me
dizem: “Você está aí metido no mundo acadêmico” ou “você precisa ir a uma siderúrgica”,
ou algo parecido. Bem, da mesma maneira que em uma siderúrgica você precisa de
trabalhadores do ferro que possam operar equipamentos, também precisa de gente
que mantenha espaços abertos dentro da universidade para esse tipo de produção
contra-hegemônica. E isso requer muito esforço, muito trabalho e muito
compromisso.
Fonte: Blog
da Boitempo
Nenhum comentário:
Postar um comentário