Rodolfo Vianna
Quando recebi a notícia da
nomeação da terceira colocada nas eleições da PUC-SP pelo Grão-Chanceler D.
Odilo Scherer para assumir como reitora, pensei: bom, não é possível, creio que
o bom senso prevalecerá e o Cardeal perceberá o equívoco que cometeu.
Porém, na sequência, lembrei
que o Cardeal representa a Igreja Católica, a mesma igreja que é contra as
campanhas de distribuição de preservativos para o combate a disseminação da
AIDS assim como também abafa os escandalosos casos de pedofilia que acontecem
em seus seminários... daí, de chofre, descartei a possibilidade de que
prevalecesse o bom-senso por parte dessa instituição.
Mas talvez o Cardeal pudesse
perceber o equívoco e retratar-se, continuei na minha linha de raciocínio. Mas
então me veio o fato de que essa mesma Igreja Católica demorou 350 anos para
reconhecer o seu equívoco quando condenou Galileu... 350 anos... E o homem já
tinha pousado na Lua. Bom, em tanto tempo assim estaremos todos mortos, e não
mais importará o reconhecimento do erro por parte de D. Odilo ou de outro que
venha a ocupar o cargo de Grão-Chanceler da PUC, se é que ainda existirá PUC ou
mesmo a Igreja Católica.
E ainda com boa vontade, li a
carta da Fundação São Paulo (que representa os interesses da Cúria junto à PUC)
na qual afirmava que não reconhecia a legitimidade do movimento grevista, nem
sua representatividade. Assim como também conclamava a todos “que, de fato,
amam a PUC” para que não aderissem à greve e continuassem seus trabalhos.
Bom, ponderei novamente, o
Vaticano é uma monarquia absolutista de cunho teocrático. Sua organização
política, enquanto Estado, é pior do que a do Irã. Sua Eminência, o Arcebispo
Metropolitano de São Paulo, Dom Odilo Pedro Cardeal Scherer, assim como todos
os demais cardeais, são conhecidos como os “Príncipes da Igreja” por ela mesma.
E é essa instituição que vai saber compreender o que é legitimidade ou mesmo
representatividade, apontando o dedo para a comunidade universitária? Creio que
não, até porque democracia, legitimidade e representatividade fogem à lógica
deles.
E sobre o amor? O que sabe a
Igreja Católica sobre o amor, ela que faz um constante e pesado lobby junto ao
nosso Estado laico (e a muitos outros pelo mundo) para o não reconhecimento do
direito civil, e reitero o civil, da união homoafetiva, condenando milhões de
filhos de Deus que simplesmente querem amar e serem amados a um sofrimento
psíquico e mesmo físico, quando alvos de intolerância homofóbica? E o que sabe
D. Odilo sobre o amor da comunidade puquiana para com a sua própria
universidade, ele que é somente o Grão-Chanceler por ser o atual Arcebispo de
São Paulo (é uma prerrogativa do cargo que ocupa), contra aqueles muitos outros
da comunidade que dedicaram partes valiosas das suas vidas, 10, 20, mais de 30
anos, para a construção da PUC?
Confesso que, nessa hora, minha
boa vontade esgotou-se frente à fria racionalidade dos fatos. E conclui que o Cardeal, afinal, estava sendo
paradoxalmente coerente. E nada mais poderia esperar do Príncipe da Igreja.
Porém, a profa. Dra. Anna Maria
Cintra, que foi a menos votada nas eleições, mas foi a nomeada pelo Cardeal,
não faz parte da hierarquia da Igreja Católica. Ela sim faz parte da comunidade
acadêmica da PUC-SP, também contribuiu para sua construção (assim como muitos
outros professores, funcionários e estudantes, incluindo os outros dois
candidatos a reitor) e, em última instância, é a essa comunidade que responde.
Tanto é assim que ela
participou no processo de eleição, apresentando as suas propostas, debatendo
suas ideias e projetos com o conjunto da comunidade, oferecendo sua plataforma
como uma das possibilidades para o desenvolvimento da PUC, buscando o voto e a
confiança da comunidade que ela pretendia liderar. Porém, a comunidade
acadêmica não foi convencida dessa plataforma, e ela acabou sendo a menos
votada entre os três candidatos.
Ainda que em nota de seus
apoiadores seja mencionado que a professora Anna Cintra ganhou entre os
professores (argumento que em si não significa nada), a vantagem nesse segmento
foi de apenas 3 pontos percentuais em relação ao primeiro colocado. Enquanto
que no segmento dos estudantes ela ficou atrás por 11 pontos percentuais e, entre
os funcionários, por 17 pontos percentuais.
Enfim, essa carta não é
endereçada ao Cardeal, até porque ele única e exclusivamente responde à
hierarquia da Igreja Católica que pertence, assim como respeita suas regras e,
mais, tenho certeza que ele também respeita suas tradições mesmo que ainda não
normatizadas. Dirijo-me a quem faz parte da mesma comunidade que eu, da
comunidade acadêmica da PUC. Dirijo-me à profa. Dra. Anna Maria Cintra.
Professora, a senhora sabe
melhor do que eu que a nossa universidade tem suas tradições e suas memórias. É
essa memória que sempre evocamos ao falar do corajoso ato da então reitora
Nadir Kfouri que, em tempos muito mais sombrios que os nossos, se recusou a dar
a mão ao coronel Erasmo Dias quando da ocupação da PUC: “não dou a mão a
assassino”, teria dito ela. É essa memória que sempre evocamos ao saudar o
gesto de D. Paulo Evaristo Arns, então Grão-Chanceler da PUC, que deu abrigo e
trabalho a professores perseguidos pela ditadura militar, entre eles Florestan
Fernandes (ateu), Octavio Ianni (ateu) e Bento Prado Jr., entre outros. E é
desse tecido de memória, incluindo tantas outras que tiveram a PUC como palco
de uma bela luta pelos direitos humanos e pela conquista da democracia no
Brasil, que é construída a tradição democrática, e gloriosa, da nossa
Universidade. E nessa tradição está inscrito também que, pelo menos desde a
década de 80, o mais votado pela comunidade torna-se seu reitor.
Enfim: hoje é essa mesma
memória que paira sobre a sua cabeça. Seu nome definitivamente será lembrado
por aqueles que hoje estão na PUC como por aqueles que um dia ainda ingressarão
nela. Porém, cabe à senhora saber como ele será evocado: como a da professora
que, compreendendo seu pertencimento à comunidade acadêmica, gentilmente
declinou da indicação do Grão-Chanceler por entendê-la como contrária à vontade
da PUC, mantendo a tradição democrática da universidade, em um gesto de coragem
e integridade que definitivamente merecerá ser lembrado por todos; ou como
aquela professora que, balançando no ar o estatuto, a fria letra da lei, e a
benção do Cardeal, apossa-se da reitoria de uma comunidade acadêmica que não
votou para que estivesse lá. Reitero o óbvio, seu nome já será lembrado, mas
ainda lhe cabe a escolha de como será evocado.
Uma gestão é de quatro anos, professora, como
sabe. Mas decidir por quatro anos de gestão interferirá em toda a sua biografia
pregressa (que respeito, em absoluto, pelo menos por ora) como também marcará
toda a sua biografia futura (que está em aberto, dependendo somente de um gesto
seu), no futuro e longo tempo da memória que essa universidade sempre prezou em
conservar.
É por isso que sua ação
implicará, quer queira ou não, uma marca na nossa tradição passada e na nossa
memória futura. E esse ato é de inteira responsabilidade sua, não havendo
nenhum álibi plausível.
São Paulo, 22 de novembro de 2012
Atenciosa e atentamente,
Rodolfo Vianna,
Doutorando em Linguística Aplicada
e Estudos da Linguagem - PUC-SP
Fonte: mensagem de email.
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