Leonardo Sakamoto
08/08/2014
Papel aceita qualquer coisa.
Inclusive homenagens públicas a qualquer pessoa. Aprovam-se leis para batizar
logradouros com carrascos da ditadura, caçadores de indígenas ou personagens
duvidosos da história.
É claro que, no limite, não
vemos sempre por aí uma Avenida Adolf Hitler ou uma Alameda Judas Iscariotes.
Mas nomes menos conhecidos acusados de fazer coisas não muito boas, muitas
vezes, passam batido e são imortalizados.
Um exemplo ocorreu em 2008,
quando a Assembleia Legislativa de Minas Gerais chegou a condecorar Antério
Mânica, então prefeito reeleito de Unaí, com a Medalha da Ordem do Mérito
Legislativo. O ato deixou entidades da sociedade civil bastante surpresas, uma
vez que o prefeito é réu em processo em que é acusado de ser o mandante da Chacina
de Unaí, quando quatro funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego foram
emboscados e assassinados durante fiscalização rural.
O bom de vivermos tempos
democráticos é que versões oficiais não são feitas de pedra. Podem e devem ser
contestadas a fim de que uma interpretação mais plural da realidade seja
construída. Uma interpretação com mais vozes. Uma interpretação que traga à
tona o que sistematicamente antigos grupos no poder queriam manter escondido.
Daí a importância das várias Comissões da Verdade por aí espalhadas para jogar
luz ao que foi a época dos Verde-Oliva e seus amiguinhos do setor privado.
Feita essa necessária
introdução, o Conselho Universitário da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) rejeitou, no último dia 5 de agosto, a revogação do título de Doutor
Honoris Causa concedido ao então coronel Jarbas Passarinho durante a ditadura
militar.
De acordo com Caio Toledo,
cientista político e professor da Unicamp, o resultado passou perto: era
necessário 2/3 do total de 75 membros, ou seja, 50 votos. Foram 49 a favor, 10
contra e 10 abstenções.
Governador biônico do Pará,
ministro do Trabalho e da Previdência Social, ministro da Educação e Cultura e
senador, ele foi um ativo defensor do golpe e da ditadura.
A Reitoria da Unicamp, questionada
por este blog, enviou nota afirmando que “respeita a opinião de todos que se
manifestaram sobre o tema, mas entende que o Conselho Universitário é soberano
em sua decisão''. Segundo a instituição, “o debate que antecedeu à votação
ocorreu dentro do espírito democrático que expressa o estado de direito, com
ampla participação de seus integrantes, que representam docentes, estudantes e
funcionários''.
A Comissão da Verdade e Memória
da Universidade Estadual de Campinas apoiou a decisão das Congregações da
Faculdade de Educação, do Instituto de Arte, do Instituto de Estudos da
Linguagem e do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) que solicitaram
a revogação. “Entendemos que não se coaduna com a história de nossa
Universidade – que sempre outorgou semelhantes títulos a renomados
pesquisadores e eminentes figuras públicas do país e do exterior – a homenagem
prestada a quem, durante os anos sombrios do regime militar, contribuiu
decisivamente para cercear a liberdade de pensamento, aposentar docentes e
pesquisadores universitários e expulsar estudantes e funcionários de
instituições públicas do país'', afirma nota da comissão.
De acordo com a moção da
Congregação do IFCH ao Conselho Universitário, o então coronel Jarbas
Passarinho foi um “destacado conspirador militar contra a legalidade
institucional da Carta de 1946 que culminou com o golpe de Estado de abril de
1964″.
A moção resgata a famosa
justificativa do voto de Passarinho na reunião do Conselho de Segurança
Nacional, de 13 de dezembro de 1968, que decidiu pelo Ato Institucional número
5, que cassou liberdades e inaugurou a fase mais sombria do regime. Disse ele:
“Sei que a Vossa Excelência
repugna, como a mim e a todos os membros desse Conselho, enveredar pelo caminho
da ditadura pura e simples, mas me parece que claramente é esta que está diante
de nós. [...] Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos
de consciência.''
O Ato Institucional número 5
inaugurou a fase mais sombria da ditadura militar brasileira, em que presos
políticos foram torturados e mortos em centros da polícia e das forças armadas,
entre eles professores e estudantes (Imagem do filme “Corte Seco'', de Renato
Tapajós)
Vale lembrar que o AI-5 foi
aplicado contra docentes, funcionários e estudantes. “Entre os 66 cientistas e
intelectuais que foram expulsos das universidades (fato que teve consequências
negativas para a pesquisa científica no Brasil), podemos lembrar, entre outros,
os nomes de Isaias Raw, Jaime Tiommo, Michel Rabinovitch, Luiz Hildebrando
Silva, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Caio
Prado Jr. e José Arthur Giannoti'', diz a moção.
Sob sua responsabilidade, 55
estudantes foram expulsos de universidades públicas sob a alegação de que
promoviam a “subversão” e a “agitação política”.
Sob sua gestão na área de
Educação, foram implantadas as Assessorias de Segurança e Informações nas
universidades públicas federais, que barravam a entrada de docentes
considerados subversivos reprimiam manifestações políticas, culturais e
artísticas.
Diz a moção: “É inaceitável a
homenagem prestada a quem contribuiu decisivamente para cercear a liberdade de
pensamento, aposentar docentes e pesquisadores universitários, expulsar
estudantes e funcionários públicos e instaurar, nos tempos sombrios do regime militar,
o clima de medo e intimidação nos campi e fora deles''. O título foi concedido
em 30 de novembro de 1973 .
Não sou a favor de apagar a
história, mas sim de estar aberto a novas interpretações sobre ela que tragam
os elementos que, por muito tempo, permaneceram escondidos. Portanto, não se
trata de mudar os nomes de ruas e avenidas e revogar homenagens das pessoas com
quem não simpatizamos por revanchismo. Mas entender como essas homenagens foram
concedidas e rever se essas pessoas merecem realmente serem consideradas
referências para as próximas gerações.
Em minha opinião e na de quase
2/3 do Conselho Universitário da Unicamp, Jarbas Passarinho não merece.
Conceder a homenagem a ele foi
deplorável. Mas mantê-la não coaduna com uma instituição de prestígio que tem a
responsabilidade de zelar pelo conhecimento humano e entender que sabedoria sem
reflexão é delinquência acadêmica.
Talvez a geração que está hoje
no poder e que, de uma forma ou outra lutou contra a ditadura que o coronel
representou, não consiga fazer Justiça às atrocidades cometidas pelos lacaios
do regime apesar de seus esforços. Algumas pessoas estão por demais inseridas
em um tempo que ainda as amarra por conveniências políticas ou econômicas aos
restolhos da Gloriosa.
Mas garanto que as próximas
gerações tratarão de jogar luz sobre o nome dos apoiadores da ditadura para que
caiam na latrina da História. Pena que muitos coroneis não estarão vivos para
ver esse dia chegar.
Fonte: Blog
do Sakamoto
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