Pesquisar este blog

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

A Armadilha da Meritocracia


Jair Pinheiro*

 A preocupação com avaliar processos e produtos se generalizou. Não se discute mais a avaliação (às vezes se encena discuti-la para reiterar mais do mesmo), apenas seus aspectos, digamos, laterais relativos à Regulamentação e ao sistema de avaliação, entendido como composição do órgão avaliador, sua relação (autonomia e subordinação) com as instâncias da instituição onde ocorre a avaliação e, quanto ao objeto avaliado, instrumento de coleta de dados, itens a serem avaliados, relação entre eles, escala de pontuação e, com base nisso, atribuição de mérito e prestígio em forma pecuniária, posição institucional, honrarias etc.

 Tal sistema visa aferir o mérito. Do ponto de vista ideológico, tornou-se impossível discordar (pelo menos publicamente) da meritocracia, pois equivaleria a estimular a indolência em prejuízo do trabalho duro e responsável. Entretanto, a unanimidade em favor da meritocracia oculta duas armadilhas que lhe são inerentes, já detectadas por Weber no começo do século XX.

 A primeira armadilha é a uniformização da vida social, ou seja, a reprodução em todos os campos particulares de uma tipologia específica de um desses campos, com o óbvio prejuízo para a riqueza da diversidade cultural e os diferentes modus operandi para tratar das questões sociais afetas a esferas distintas, o que Weber expõe resignadamente da seguinte forma: “A concepção que o americano tem do professor que o enfrenta é: ele me vende seu conhecimento e seus métodos em troca do dinheiro do meu pai, tal como o verdureiro vende repolhos à minha mãe. Eis tudo”[i].

A resignação deste autor reside no fato de que ele detecta a tendência, mas não a explora; aposta na prevalência da figura típica ideal do professor vocacionado.

 A segunda armadilha consiste no fato de que um sistema de avaliação, tal como qualquer outro sistema administrativo, opera com base em critérios burocráticos que, quanto mais aperfeiçoados na forma e ampliados na aplicação, tendencialmente gera uma aristocracia burocrática com poder de determinar o conteúdo das operações que realiza e, por essa via, o critério de reconhecimento na área em que opera e o acesso aos recursos que administra. Como é sabido, para o campo propriamente político Weber propõe a democracia parlamentar como remédio para o burocratismo[ii]. O mal-estar na democracia parece indicar que o remédio não tem funcionado.

Estes efeitos não são contingentes, mas necessários; porque a lógica interna da meritocracia é a da univocidade, que determina tanto os critérios de avaliação quanto as premissas e os procedimentos do sistema de avaliação. Por outras palavras, se não é impossível, no mínimo é muito difícil avaliar um conjunto heterogêneo de indivíduos e/ou atividades com vistas a aferir mérito sem um critério comum e, ao mesmo tempo, exprimir o resultado dessa avaliação em termos inequívocos, se tal critério não for traduzido em um quantum, uma régua comum, por assim dizer. Quantum que não encontra outra base material comum a toda atividade, onde se apoiar, se não o tempo de trabalho; daí a adoção geral do conceito de produtividade, que nada mais é que o quociente da relação produção/horas trabalhadas de um indivíduo, um departamento, uma unidade de produção etc.; abstraídas todas as demais condições.

Não por acaso, vivemos a experiência da aceleração do tempo como nunca antes na história, “tudo que era sólido e estável se desmancha no ar”[iii] antes que possa se estabelecer, crescer e frutificar, pois é preciso abrir espaço para o produto da nova estação. Recentemente[iv], fomos informados de que o Brasil passou de 24º lugar para 13º em ranking de pesquisa, desde 1994, com destaque para as áreas de medicina e de ciências agrárias. Cabe a pergunta: quanto dessas pesquisas colaborou para melhorar a assistência médica no país e a produção do alimento que chega à mesa do brasileiro (não a que é exportada)? A resposta para essa questão poderia ser um indicador de avaliação de pesquisa.

 O impacto negativo desse sistema de avaliação científica baseado na produtividade vem sendo acusado por vários pesquisadores no Brasil e no exterior, embora não tenha merecido ainda a atenção necessária das agências de fomento e dos programas de pós-graduação. Cito dois exemplos ilustrativos de crítica a esse estado de coisas: “Peter Higgs, o físico britânico que deu nome ao Bóson de Higgs não acredita que a universidade o empregaria no sistema acadêmico atual porque ele não seria considerado suficientemente “produtivo””. O professor emérito na Edinburgh University, (...), publicou menos de 10 artigos após seu trabalho inovador, que identificou o mecanismo pelo qual material subatômico adquire massa, publicado em 1964. Ele duvida que progresso similar pudesse ser realizado na cultura acadêmica atual, por causa das expectativas de que acadêmicos colaborem e mantenham alto número de artigos. Ele diz: “É difícil imaginar o quanto eu teria de paz e tranquilidade no tipo de ambiente atual para fazer o que fiz em 1964”.[v]

Os signatários da San Francisco Declaration on Research Assessment, após algumas observações críticas sobre o sistema vigente, sugerem alguns critérios de avaliação, dos quais destaco três:

“Recomendação Geral”

1. Não usar métricas baseadas nos journals, tais como as do Journal Impact Factors, como uma medida equivalente da qualidade de indivíduos, para avaliar contribuições de um cientista individual, ou contratação, promoção e decisões de financiamento.

Para Agências de Fomento

2. Ser explícita quanto aos critérios usados para avaliar a produtividade científica dos requerentes de concessão e, claro, especialmente, para pesquisadores iniciantes, que o conteúdo científico de um artigo é muito mais importante do que a métrica ou a identidade do journal no qual foi publicado.

3. Para os propósitos de avaliação de pesquisa, considerar o valor e o impacto de todos os resultados (incluindo banco de dados e software), além das publicações, considerar também o alcance das medidas de impacto, incluindo indicadores qualitativos do impacto da pesquisa, tal como influência em políticas e na prática[vi]”.

Da crítica de Higgs e das recomendações dos signatários da San Francisco Declaration on Research Assessment, pode-se extrair pelo menos duas indicações para areflexão: 1) a incompatibilidade em alto grau entre o critério de produtividade e as exigências da produção científica e 2) a variedade de resultados da pesquisa científica a ser avaliada. Essas indicações levam à conclusão de que falar de mérito, no singular, alimenta a lógica da univocidade, acima mencionada, impedindo a percepção e a devida consideração da pluralidade e diversidade do que ocorre no campo da produção científica e cultural. Talvez seja o caso de passar-se a falar de méritos, no plural, e de produção como resultado, não de produtividade como quociente da relação produção/horas trabalhadas; aliás, mesmo ali onde o conceito se aplica adequadamente, a empresa, é hora de discutir a distribuição dos seus benefícios.

* Professor do Depto. de Ciências Políticas e Econômicas da FFC/UNESP/Marília e pesquisador do NEILS – Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais e do grupo de pesquisa CPMT – Cultura e Política do Mundo do Trabalho.


[i] Ciência como vocação. In: Gerth, H. H. e Mills, c Wright (org.). Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro Editora Guanabara, 1979, p. 176-177.
[ii] Veja-se Parlamento e governo numa Alemanha reordenada. Petrópolis, RJ: Vozes,
[iii] Frase extraída d’O Manifesto Comunista, de Marx e Engels.
[iv] Folha de São Paulo de 01/11/14
[v] Disponível em: http://www.theguardian.com/science/2013/dec/06/peter-higgs-boson-academic-system

Nenhum comentário:

Postar um comentário