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sábado, 24 de novembro de 2012

A tradição, a ação e a memória


Rodolfo Vianna

Quando recebi a notícia da nomeação da terceira colocada nas eleições da PUC-SP pelo Grão-Chanceler D. Odilo Scherer para assumir como reitora, pensei: bom, não é possível, creio que o bom senso prevalecerá e o Cardeal perceberá o equívoco que cometeu.
Porém, na sequência, lembrei que o Cardeal representa a Igreja Católica, a mesma igreja que é contra as campanhas de distribuição de preservativos para o combate a disseminação da AIDS assim como também abafa os escandalosos casos de pedofilia que acontecem em seus seminários... daí, de chofre, descartei a possibilidade de que prevalecesse o bom-senso por parte dessa instituição.
Mas talvez o Cardeal pudesse perceber o equívoco e retratar-se, continuei na minha linha de raciocínio. Mas então me veio o fato de que essa mesma Igreja Católica demorou 350 anos para reconhecer o seu equívoco quando condenou Galileu... 350 anos... E o homem já tinha pousado na Lua. Bom, em tanto tempo assim estaremos todos mortos, e não mais importará o reconhecimento do erro por parte de D. Odilo ou de outro que venha a ocupar o cargo de Grão-Chanceler da PUC, se é que ainda existirá PUC ou mesmo a Igreja Católica.
E ainda com boa vontade, li a carta da Fundação São Paulo (que representa os interesses da Cúria junto à PUC) na qual afirmava que não reconhecia a legitimidade do movimento grevista, nem sua representatividade. Assim como também conclamava a todos “que, de fato, amam a PUC” para que não aderissem à greve e continuassem seus trabalhos.
Bom, ponderei novamente, o Vaticano é uma monarquia absolutista de cunho teocrático. Sua organização política, enquanto Estado, é pior do que a do Irã. Sua Eminência, o Arcebispo Metropolitano de São Paulo, Dom Odilo Pedro Cardeal Scherer, assim como todos os demais cardeais, são conhecidos como os “Príncipes da Igreja” por ela mesma. E é essa instituição que vai saber compreender o que é legitimidade ou mesmo representatividade, apontando o dedo para a comunidade universitária? Creio que não, até porque democracia, legitimidade e representatividade fogem à lógica deles.
E sobre o amor? O que sabe a Igreja Católica sobre o amor, ela que faz um constante e pesado lobby junto ao nosso Estado laico (e a muitos outros pelo mundo) para o não reconhecimento do direito civil, e reitero o civil, da união homoafetiva, condenando milhões de filhos de Deus que simplesmente querem amar e serem amados a um sofrimento psíquico e mesmo físico, quando alvos de intolerância homofóbica? E o que sabe D. Odilo sobre o amor da comunidade puquiana para com a sua própria universidade, ele que é somente o Grão-Chanceler por ser o atual Arcebispo de São Paulo (é uma prerrogativa do cargo que ocupa), contra aqueles muitos outros da comunidade que dedicaram partes valiosas das suas vidas, 10, 20, mais de 30 anos, para a construção da PUC?
Confesso que, nessa hora, minha boa vontade esgotou-se frente à fria racionalidade dos fatos.  E conclui que o Cardeal, afinal, estava sendo paradoxalmente coerente. E nada mais poderia esperar do Príncipe da Igreja.
Porém, a profa. Dra. Anna Maria Cintra, que foi a menos votada nas eleições, mas foi a nomeada pelo Cardeal, não faz parte da hierarquia da Igreja Católica. Ela sim faz parte da comunidade acadêmica da PUC-SP, também contribuiu para sua construção (assim como muitos outros professores, funcionários e estudantes, incluindo os outros dois candidatos a reitor) e, em última instância, é a essa comunidade que responde.
Tanto é assim que ela participou no processo de eleição, apresentando as suas propostas, debatendo suas ideias e projetos com o conjunto da comunidade, oferecendo sua plataforma como uma das possibilidades para o desenvolvimento da PUC, buscando o voto e a confiança da comunidade que ela pretendia liderar. Porém, a comunidade acadêmica não foi convencida dessa plataforma, e ela acabou sendo a menos votada entre os três candidatos.
Ainda que em nota de seus apoiadores seja mencionado que a professora Anna Cintra ganhou entre os professores (argumento que em si não significa nada), a vantagem nesse segmento foi de apenas 3 pontos percentuais em relação ao primeiro colocado. Enquanto que no segmento dos estudantes ela ficou atrás por 11 pontos percentuais e, entre os funcionários, por 17 pontos percentuais.

Enfim, essa carta não é endereçada ao Cardeal, até porque ele única e exclusivamente responde à hierarquia da Igreja Católica que pertence, assim como respeita suas regras e, mais, tenho certeza que ele também respeita suas tradições mesmo que ainda não normatizadas. Dirijo-me a quem faz parte da mesma comunidade que eu, da comunidade acadêmica da PUC. Dirijo-me à profa. Dra. Anna Maria Cintra.
Professora, a senhora sabe melhor do que eu que a nossa universidade tem suas tradições e suas memórias. É essa memória que sempre evocamos ao falar do corajoso ato da então reitora Nadir Kfouri que, em tempos muito mais sombrios que os nossos, se recusou a dar a mão ao coronel Erasmo Dias quando da ocupação da PUC: “não dou a mão a assassino”, teria dito ela. É essa memória que sempre evocamos ao saudar o gesto de D. Paulo Evaristo Arns, então Grão-Chanceler da PUC, que deu abrigo e trabalho a professores perseguidos pela ditadura militar, entre eles Florestan Fernandes (ateu), Octavio Ianni (ateu) e Bento Prado Jr., entre outros. E é desse tecido de memória, incluindo tantas outras que tiveram a PUC como palco de uma bela luta pelos direitos humanos e pela conquista da democracia no Brasil, que é construída a tradição democrática, e gloriosa, da nossa Universidade. E nessa tradição está inscrito também que, pelo menos desde a década de 80, o mais votado pela comunidade torna-se seu reitor.
Enfim: hoje é essa mesma memória que paira sobre a sua cabeça. Seu nome definitivamente será lembrado por aqueles que hoje estão na PUC como por aqueles que um dia ainda ingressarão nela. Porém, cabe à senhora saber como ele será evocado: como a da professora que, compreendendo seu pertencimento à comunidade acadêmica, gentilmente declinou da indicação do Grão-Chanceler por entendê-la como contrária à vontade da PUC, mantendo a tradição democrática da universidade, em um gesto de coragem e integridade que definitivamente merecerá ser lembrado por todos; ou como aquela professora que, balançando no ar o estatuto, a fria letra da lei, e a benção do Cardeal, apossa-se da reitoria de uma comunidade acadêmica que não votou para que estivesse lá. Reitero o óbvio, seu nome já será lembrado, mas ainda lhe cabe a escolha de como será evocado.
 Uma gestão é de quatro anos, professora, como sabe. Mas decidir por quatro anos de gestão interferirá em toda a sua biografia pregressa (que respeito, em absoluto, pelo menos por ora) como também marcará toda a sua biografia futura (que está em aberto, dependendo somente de um gesto seu), no futuro e longo tempo da memória que essa universidade sempre prezou em conservar.
É por isso que sua ação implicará, quer queira ou não, uma marca na nossa tradição passada e na nossa memória futura. E esse ato é de inteira responsabilidade sua, não havendo nenhum álibi plausível.
             São Paulo, 22 de novembro de 2012
            Atenciosa e atentamente,
            Rodolfo Vianna,
            Doutorando em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem - PUC-SP
Fonte: mensagem de email.

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