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terça-feira, 6 de novembro de 2012

Incrível retrocesso na educação superior

Ilustração: Daniel Kondo

O que explica a primazia do ensino superior privado no país? Esse processo advém da ditadura civil-militar, que fez da privatização um projeto dominante, utilizando-a até mesmo para estancar pressões sociais dos “excedentes” no vestibular (aprovados, mas sem garantia de vaga) e da força do movimento estudantil na época
por César Augusto Minto*
e Lalo Watanabe Minto**
A educação brasileira está organizada em dois níveis: básica e superior. Por razões de espaço, destacamos aqui o segundo nível. O país adota formalmente um modelo de universidade que realiza ensino, pesquisa e extensão de forma indissociada. As universidades públicas produzem, quantitativa e qualitativamente, o que há de mais avançado em todas as áreas de conhecimento, contribuindo para o desenvolvimento científico, tecnológico e cultural do país e para a promoção do bem-estar de seu povo.
Contudo, esse modelo convive com a existência de inúmeras instituições de ensino superior (IES) que não se caracterizam como universidades: particulares, comunitárias, confessionais e filantrópicas00[1]. Em geral, com exceção das IES públicas (sobretudo federais e estaduais, pois as municipais se assemelham às privadas), as demais não realizam pesquisas, grande parte delas oferece ensino de qualidade questionável e a quase totalidade visa exclusivamente ao lucro. De 1999 a 2009, as matrículas de graduação presencial públicas cresceram 62%; as particulares, 345%; e as privadas sem fins lucrativos diminuíram 2%; as matrículas em IES não universitárias passaram de 31,7% para 46,9% do total, sendo 80,9% nas particulares.[2]
O quadro esboçado é preocupante, mais ainda se considerarmos que, há muito, setores sociais conservadores têm defendido a “flexibilização” da indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão, sob duas alegações: 1) a diversidade do povo brasileiro, que supostamente demandaria a variedade de modelos; e 2) nem toda formação precisa da pesquisa, curiosamente a função que viabiliza a construção de conhecimento e a mais cara das três.[3] A partir do governo Collor, essa visão ganhou status de “oficial”, ao mesmo tempo que se interrompeu uma salutar tendência a avanços sociais iniciada com a Constituição Federal de 1988.
O que explica a primazia do ensino superior privado no país? Esse processo advém da ditadura civil-militar, que fez da privatização um projeto dominante, utilizando-a até mesmo para estancar pressões sociais dos “excedentes” no vestibular (aprovados, mas sem garantia de vaga) e da força do movimento estudantil na época. Desde então, fortaleceu-se uma concepção tecnicista de ensino superior que reforçou a separação entre ensino de elite (em parte das IES públicas e das privadas mais tradicionais) e ensino de massa, privado, para atendimento de demandas emergentes, sobretudo da classe média e de setores da classe trabalhadora.
Anos depois, a opção política pela resposta privatista às necessidades de expansão do ensino superior resultou no agravamento das desigualdades do setor. Tendo, de um lado, uma universidade pública de qualidade reconhecida, mas restrita a poucos, e, de outro, uma porção de IES privadas de qualidade duvidosa, esse ensino tornou-se sempre mais desigual, afetando em especial as áreas efetivamente menos valorizadas, entre as quais se destaca a da formação de professores.
Um novo impulso à privatização ocorreu a partir dos anos 1990, no bojo da reestruturação capitalista global, e materializou-se por meio da doutrina de reforma do Estado[4]. Tendo a privatização, a terceirização e a publicização como meios e a administração pública gerencial como fim, a reforma do Estado realizou algumas inversões conceituais importantes, entre elas a substituição de direito por serviço. Essa doutrina aponta claramente para a mercantilização.
As diretrizes da reforma passaram a ser positivadas em leis a partir da Emenda Constitucional n. 19, de 1998, reforçando o caminho da mercantilização dos direitos sociais. Terceirização é a “execução indireta de serviços públicos, mediada por contratos submetidos a licitações supostamente isentas, do que deriva o ingresso de trabalhadores sub-remunerados em atribuições públicas sem o devido concurso”[5]. Já a publicização implica a transferência dos serviços sociais e científicos então prestados pelo Estado para o setor público não estatal; vale dizer, promove a indistinção entre estatal e privado/mercantil à medida que desconsidera os meios e objetivos específicos do processo educativo, ressaltando apenas seus resultados quantitativos[6].
Explicitamente assumida ou não, a reforma atinge corações e mentes outrora insuspeitos, e passa a orientar também as políticas para o ensino superior. Nesse caso, a empreitada foi energizada pela insuficiência crônica de recursos que resultou, por exemplo, em um grande desequilíbrio entre candidatos e vagas no setor público. Além da privatização propriamente dita, a legislação em vigor permite que IES ditas sem fins lucrativos recebam recursos estatais na forma de: a) subvenção social; b) auxílio; c) contribuição; d) convênio; e) termo de parceria; f) imunidade de impostos; g) imunidade de contribuições sociais; h) isenção; i) incentivo fiscal ao doador; j) voluntariado.[7]
A partir de meados da década de 2000, o governo federal passou a viabilizar duas formas principais de expansão do ensino superior:
a) estatal, via ampliação de vagas e criação de novas IES por meio do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni, 2007), que condiciona os recursos ao atendimento de metas nos cursos de graduação presenciais: dezoito estudantes por docente e taxa de conclusão média de 90%, entre outras. Ocorre que a relação 18/1 não se coaduna com o modelo da indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão, e não se tem notícia de que a taxa citada seja atingida, nem sequer nas melhores universidades mundo afora;
b)privada, via criação do Programa Universidade para Todos (ProUni, 2004-2005), que utiliza recursos públicos para comprar vagas “ociosas” de IES privadas, incluindo as com fins lucrativos. Ademais, registre-se o uso indiscriminado do ensino a distância, sobretudo na formação inicial e de docentes.
Projetos desse tipo fragilizam ainda mais as condições de funcionamento das instituições. Por um lado, corroboram a tendência de separação entre IES de ensino e IES de pesquisa, assim como acirram as divisões entre as áreas de conhecimento, sobretudo pela disputa por recursos. Por outro lado, distanciam o país da construção de um efetivo sistema nacional de educação (menos desigual e mais orgânico e adequado às necessidades regionais). Também pioram as condições de trabalho dos servidores e de estudo dos alunos, ao passo que se reduzem os espaços para contestação institucional, uma vez que boa parte das IES públicas mantém estruturas oligárquicas e anacrônicas, algumas com eleição indireta de dirigentes (reitores e diretores) e composição de órgãos colegiados sem ampla representação dos envolvidos (a USP, por exemplo). Nas particulares, a situação é dramática: em 2009, 53% dos docentes eram horistas, enquanto 25,5% atuavam em tempo parcial.
Soma-se a isso o recrudescimento do autoritarismo. Em nome de garantir um ambiente propício à perenização de muitas funções privadas às quais as universidades públicas foram sendo submetidas (fundações, convênios com empresas, contratos de terceirização, cursos pagos etc.), a onda repressiva se espalha e, de certo modo, se naturaliza. As formas de controle de movimentos organizados, vozes dissonantes e contestadoras, ocultam os fundamentos reais dos problemas educacionais, buscando “resolvê-los” com medidas duras. Não raro, conflitos políticos tornam-se casos de criminalização judicial, para não dizer do reavivamento de práticas ditatoriais: espionagem, incursões policiais e crescente militarização do espaço físico dos campi (cancelas, catracas, câmeras de vigilância)[8], criando uma tendência torpe de as universidades se parecerem cada vez mais com presídios do que com locais de produção e disseminação de conhecimento.
Diante da atual tendência de mercantilização – agravada pela entrada das IES particulares nas Bolsas de Valores e por práticas como os fundos privados de captação de recursos (endowments) nas IES públicas – e de sufocamento dos conflitos nas universidades, o ensino superior que está sendo construído corresponde aos anseios da sociedade?
Para que cumpram um papel emancipador, é preciso propiciar condições às IES: recursos adequados, pessoal bem formado, autonomia. Indivíduos com formação crítica podem tornar-se protagonistas de sua própria história, individual e coletiva. A pesquisa precisa ser patrocinada e não pode ser submetida a retornos rápidos, encurtamento dos prazos de formação na pós-graduação, enxugamento curricular, interesses próprios do mercado e do tempo da lucratividade das empresas.
Numa era em que o saber se torna cada vez mais fluido e fragmentário em todas as áreas, formar profissionais capazes de formular perguntas e respostas originais, antes de ser uma demanda do mundo em que se vive, é uma necessidade da sociedade que se almeja construir. Conhecimentos apenas adaptados a ritmos e forças do mundo atual não bastam. É preciso abrir portas para o futuro.
A recente greve dos servidores federais na área da educação pode ser tomada como exemplo: 1) de descaso governamental, que permite a situação chegar a limites intoleráveis (sua proposta desestrutura a carreira, descaracteriza o regime de trabalho de dedicação exclusiva, fere a autonomia universitária e sinaliza a retirada de direitos expressos em legislação anterior)[9]; e 2) de resistência dos trabalhadores organizados em contraposição a situações adversas, o que demonstra a possibilidade de construir as alternativas necessárias.
É urgente reverter o retrocesso na educação superior!
*Professor da Faculdade de Educação da USP e vice-presidente da Associação dos Docentes da USP
** Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, campus de Marília.
Ilustração: Daniel Kondo


[1] Ver Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (LDB), art. 20, incisos I a IV.
[2] A Sinopse estatística da educação superior 2010 (Inep) não traz dados que permitam diferenciar as IES privadas.
[3] Atende-se, assim, aos “critérios do mercado”, em duplo sentido: a flexibilização da formação resulta em mão de obra precarizada e com custo rebaixado, da mesma forma que permite a operação mais lucrativa das próprias IES privadas, as grandes responsáveis por esse tipo de formação.
[4] Consulte os dezessete volumes dos Cadernos Mare da Reforma do Estado, Brasília, 1997-1998.
[5] Rudi Cassel, “Terceirização no serviço público”, Valor Econômico, 18 jul. 2012, p.E2.
[6] “Em síntese, a estratégia de publicização visa a aumentar a eficiência e a qualidade dos serviços, atendendo melhor o cidadão-cliente a um custo menor” (Cadernos Mare n.2, Brasília, 1998, p.12).
[7] Sugerimos ver a “justificação” do Projeto de Lei n. 7.639, de 2010, da deputada Maria do Rosário (PT-RS) e outros. Trata das Instituições Comunitárias de Educação Superior (Ices).
[8] A maior parte também decorre de contratos (terceirizações) com a iniciativa privada.
[9] Decreto n. 94.664, de 23 de julho de 1987 (PUCRCE). Aprova o Plano Único de Classificação e Retribuição de Cargos e Empregos de que trata a Lei n. 7.596, de 10 de abril de 1987.

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