Diferente do
que ocorre nas escolas básicas da rede pública, em uma escola militar o posto
de diretor não é ocupado por um pedagogo; a gestão é realizada por um policial
com formação técnica equivalente a uma graduação voltada à educação
04/03/2014
Por Ana
Luiza Basílio, Danilo Mekari,
Jéssica
Moreira, Julia Dietrich, Pedro Ribeiro Nogueira,
Raiana
Ribeiro e Roberta Tasselli
Pela manhã,
todos se concentravam no pátio. As turmas uniformizadas se dividiam em pelotões
para a verificação dos presentes. Era o momento em que cada estudante se
apresentava a um oficial, batendo continência e mostrando respeito e
disciplina. Em seguida, a bandeira nacional era hasteada e todos entoavam o
hino nacional, da Independência ou do estado. A descrição acima poderia ser de
um quartel, mas era o dia a dia de Bruno Pena, 28, que frequentou, de 1999 a
2003, um dos seis colégios da polícia militar de Goiás, o CPMG Hugo de Carvalho
Ramos.
Onze anos
depois, este modelo escolar continua vivo no estado. Só em janeiro deste ano,
dez novos colégios foram inaugurados em diferentes municípios goianos. Até o
fim de 2014, mais três escolas deste modelo serão entregues, totalizando 19 no
sistema. Administradas pela Polícia Militar do estado, essas unidades são fruto
de um termo de cooperação técnico-pedagógico entre as Secretarias Estaduais de
Segurança Pública e Educação, envolvendo também as subsecretarias regionais de
ensino. As escolas atendem estudantes do Ensino Fundamental II e Ensino Médio
em todos os períodos.
Uma das
justificativas para a existência do modelo de educação militar tem como pano de
fundo a violência nos territórios onde as escolas estão inseridas. Segundo
dados do Mapa da Violência 2013, entre 1998 e 2010, o índice de homicídio de
Goiás cresceu 119,4% (29,4 homicídios a cada cem mil habitantes), ao mesmo
tempo que a taxa do Brasil ficou estagnada em 26,2.
"Legislação
- Na Constituição Federal, o inciso VI do artigo 206, também ratifica a
gestão democrática como um dos princípios da educação brasileira".
A deputada
Sônia Chaves (PSDB), uma das responsáveis por apresentar o requerimento de
expansão do modelo ao governador do estado, Marconi Perillo (PSDB), aponta que
o projeto está em sintonia com a demanda educacional dos municípios da região.
“Nós fomos procurados por muitos gestores que lidam com a questão para
interceder junto ao governador pela instalação de colégios militares em outras
cidades.”
Para Paulo
Carrano, professor da Universidade Federal Fluminense, a Polícia Militar é uma
herança dos períodos autoritários e, por essa razão, considera um desvio
institucional e um equívoco educacional que ela assuma responsabilidades com a
rede pública de ensino. “Mas o senso comum vê na medida um elemento capaz de
levar segurança às escolas e disciplinar crianças e jovens que teriam fugido ao
controle de seus familiares e professores. Há também aqui um indício de
falência da noção de escola como centro cultural público emancipatório e de
formação cidadã. A disciplina faz parte do processo educativo, mas não pode ser
nossa utopia educacional e civilizatória”, contesta.
A hierarquia escolar
Diferente do
que ocorre nas escolas básicas da rede pública, em uma escola militar o posto
de diretor não é ocupado por um pedagogo; a gestão é realizada por um policial
com formação técnica equivalente a uma graduação voltada à educação.
Cabe também
aos militares lecionar a disciplina de “Noções de Cidadania”, que aborda temas
como a “ordem unida”, orientações de trânsito, Constituição Federal, meio
ambiente, etiqueta social, prevenção às drogas e educação religiosa. “A
filosofia de trabalho é reacender nos nossos alunos os valores que foram
esquecidos pela sociedade brasileira, como o amor ao civismo, à verdade e ao
próximo”, defende Edmilson Pereira de Araújo, comandante diretor do CPMG Doutor
Cezar Toledo, localizado em Anápolis.
A proposta
dos colégios militares de promover “a ordem”, “o civismo” e “a moral”, segundo
o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Miguel Arroyo, não
é novidade, antecede a ditadura militar com a educação moral e cívica e remete
a uma visão da elite de condenar os populares como aqueles que não têm
civilidade e valores. “Nossa educação sempre foi mais moral que intelectual.
Nossa escola nunca teve a cultura de formar cidadãos. Aqui quem forma é a
justiça, a partir da repressão”, condena.
A hierarquia
nos colégios militares de Goiás fere o inciso VIII do artigo 3º da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), que preconiza a gestão
democrática como um dos princípios do ensino público no país. “Acreditamos que
a gestão escolar sob responsabilidade da polícia pode ser nociva, uma vez que
repassa a hierarquia militar ao estudante. Nesse modelo, a construção do
coletivo se dá pelo medo e não com base na parcimônia, respeito e múltiplos
métodos de convivência”, avalia Márcio Menezes Moreira, assistente da
Relatoria da Educação da Plataforma Dhesca Brasil.
Na visão do
pesquisador da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO), André
Lázaro, oficiais, policiais e bombeiros podem se tornar educadores, desde que
se submetam a concursos públicos e, por esse trajeto, assumam legitimamente a
direção de estabelecimentos de educação. “Neste caso, há uma inversão: a escola
é gerida por militares por serem apenas militares e a função da educação fica
esquecida.”
Disciplina como resposta
Além da
matéria voltada às noções básicas de cidadania, os colégios militares de Goiás
possuem, a cada turno, um momento chamado de “seção disciplinar”, destinada aos
alunos que não caminham de acordo com as normas do colégio. “Os policiais dão
todo o suporte para que os professores tenham tranquilidade para ministrar sua
aula. Toda escola tem situações de alunos que vão para atrapalhar e aqui não é
diferente. Há casos de professores e funcionários sendo agredidos, ultrajados
em sua moral. Esse serviço é preventivo e, quando detectamos que algum aluno
está saindo fora da rotina de nosso colégio, chamamos os pais para dividirem
essa responsabilidade conosco”, explica o comandante-diretor Edmilson.
Quando o
estudante entra no colégio, ele é avaliado em duas notas diferentes: uma sobre
o currículo e outra disciplinar. Na avaliação de conduta, todos começam com uma
“nota padrão” e vão perdendo pontos ao passo que falham diante das regras. “Se
o aluno chega abaixo de determinada pontuação, ele então é encaminhado ao
Conselho Escolar, que normalmente acaba por expulsar o estudante. É como se
fossem multas de trânsito”, relata a professora Ticiana Barbosa Bernardes, que
lecionou por sete anos no CPMG Carlos Cunha Filho, do município de Rio Verde.
Para a docente, as regras não vêm para tornar a criança submissa e sim para
“dar conduta e garantir bom comportamento.”
Existem
ainda outras regras: os estudantes devem usar as fardas corretas de acordo com
ocasião, as meninas não podem usar esmalte escuro e devem amarrar o cabelo, não
é permitido piercings ou mais de um furo na orelha, nem pulseiras, correntes ou
colares. Aos professores, também é norma manter o cabelo curto, a aparência
asseada e moderar o uso de acessórios. Para as infrações dos estudantes, as
punições são diversas – desde copiar artigos de conduta à suspensão de aulas ou
até expulsão.
Os alunos
podem sair da escola sem farda, mas se o fazem vestidos com o uniforme devem
mantê-lo em perfeito alinhamento. “Teve um caso em que um garoto tirou a camisa
para fora da calça, uma coordenadora encontrou com ele no ônibus e ele foi
punido”, relembra Ticiana.
Foi por
causa da disciplina que o pai do então estudante Bruno, que cursou o CPMG Hugo
de Carvalho Ramos por cinco anos, escolheu o colégio militar. “Ele
acreditava que era a última saída para mim, o filho rebelde, por conta das
orientações disciplinares”, avalia o jovem, relembrando que a cada vez que um
professor entrava na sala, o chefe de turma batia
continência e anunciava o número de presentes na aula. De acordo com o
manual do aluno, cada sala nomeia um chefe, que tem domínio sobre os demais
colegas e zela pela disciplina do coletivo. Há também um subchefe para cuidar
da limpeza e um estudante chefe geral para cada turno, responsável por auxiliar
a coordenação disciplinar e realizar a chamada dos demais.
Quando
estudante, Bruno criou o grêmio em sua escola como resposta à falta de espaços
de participação dos estudantes. O Conselho Escolar, por exemplo, composto por
representantes da direção, docentes e famílias, não contava com a presença de
alunos. Na hora dos julgamentos sobre as possíveis expulsões, não havia
possibilidade para que o estudante contra-argumentasse ou se defendesse. “Isso
não é formar o cidadão, é apenas selecionar”, explica Bruno, que embora tenha críticas,
é favorável ao sistema de ensino. “Passar por uma experiência dessa é bom para
todo mundo, tanto para repudiar e dar valor à liberdade, quanto para adquirir
valores, como disciplina, ordem e hierarquia.”
Taxas
Além de
obrigatórios, os uniformes devem ser providenciados pelas famílias. Cada
estudante tem, pelo menos, quatro tipos deles, que chegam a custar até R$100
cada. Para arcar com estas e outras despesas, o termo de cooperação
técnico-pedagógico permite que, uma vez aprovada pelo Conselho Escolar, a
escola sugira uma contribuição voluntária.
Esta
contribuição resulta em um fundo, cujos 10% podem ser utilizados para cobrir
despesas de alunos que não possuem recursos suficientes. “Aqui nós
trabalhamos a questão da solidariedade humana. Em nosso almoxarifado, temos
peças [uniformes] que podem ser doadas ou vamos atrás de pessoas que possam nos
apoiar”, explica o coronel-diretor Edimilson.
Até janeiro
deste ano, os termos vinham sendo cumpridos legalmente. Contudo, no processo de
expansão, o Ministério Público (MP) de Goiás foi acionado por pais de
estudantes de unidades de Valparaíso, Novo Gama, Cidade de Goiás e Inhaúma, que
alegavam que a “contribuição” não foi acordada no Conselho Escolar. “As
cobranças vinculavam, inclusive, a matrícula desses alunos ao pagamento. O
mesmo ocorreu com os uniformes”, explica a coordenadora do Centro de Apoio
Operacional da Educação do MP-GO, Simone de Sá Campos.
Inicialmente,
a questão foi resolvida com diálogo entre o MP e o Comando de Ensino da PM, no
sentido de orientar os gestores das escolas de que essa prática fere o direito
à educação e permanência dos estudantes na escola. “Apenas em Valparaiso e Rio
Verde foi preciso que o MP entrasse com uma ação civil pública contra a
cobrança. O juiz concedeu liminares e as escolas que desobedecerem a decisão
estarão sujeitas à multas diárias e seus gestores podem, inclusive, ser
presos”, esclarece Simone.
Para Márcio
Moreira, da Plataforma Dhesca, a necessidade dos materiais e mesmo da
contribuição voluntária é preocupante, pois ao ferir o princípio da gratuidade,
viola-se a condição da escola como universal e equitativa. “Se penso em insumos
apenas pra quem tem condições financeiras, eu não dou as mesas condições e
violo o principio de permanência na escola. Aqueles que têm mais recursos
conseguem e os outros não”, justifica.
Ordem e progresso
A Secretaria
de Segurança Pública alega que a medida não responde apenas à contenção de
violência e sim ao fato de que os colégios militares apresentam bons resultados
nos sistemas de avaliação, como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Segundo o pesquisador
Sirismar Fernandes Silva, na tese “Hierarquia e disciplina no colégio da
polícia militar – estudo de caso do CPMG Doutor Cézar Toledo”, a estrutura
pedagógica mais rígida, baseada em disciplina individual e coletiva, proposta
pelas unidades, favorece os bons resultados nas avaliações padronizadas.
Essa
tendência em associar melhoras nas avaliações a um maior controle da escola e
do aluno também é vista pelo Luiz Carlos Freitas, doutor da Faculdade de
Educação da Universidade de Campinas (Unicamp) . “Essa mentalidade leva a
pensar que para melhorar o ensino tem que botar todos na linha e, com isso, tem
um processo de valorização excessiva da disciplina, o que acaba produzindo uma
pedagogia penal direcionada às classes média e pobre”, explica.
Essa
melhoria nos índices, para Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional
pelo Direito à Educação, é reflexo, na verdade, do maior investimento e atenção
do poder público. “Contudo, as escolas com gestão democrática e de discussão
compartilhada, como as escolas técnicas e federais, vão muito melhor em
avaliações de larga escala e vestibulares do que estas.”
Análise
Especialistas
ouvidos pelo Centro de Referências em Educação Integral e Portal Aprendiz
consideram o modelo goiano um equívoco, justamente por promover um sistema
autoritário como contrapartida ao cenário de violência, que carece de leis que
promovam a convivência humana, diálogo e compreensão.
Para Paulo
Carrano, o conceito da violência é polissêmico e, muitas vezes, casos de
indisciplina ou dificuldades de relacionamento podem ser confundidos com a
violência física propriamente dita.
“As
instituições precisam reconhecer que as violências são sempre relacionais e que
não existe um único fator que possa ser ‘atacado’ para que o ‘maus elementos’
sejam controlados ou afastados do convívio. A grande questão é produzir as
bases de convivência no mesmo espaço-tempo institucional, garantindo melhores
condições de trabalho e formação dos profissionais e transformando a escola num
bom lugar para se estar”, aponta.
Por sua vez,
Ieda Leal, presidenta do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Goiás
(Sintego), acredita que é preciso resolver questões que estão fora da escola,
como moradia e assistência social e promover colaboração para que os
professores possam atuar em conjunto com outros atores.
“É normal
que tudo ‘arrebente’ dentro da escola porque é lá que o aluno passa a maior
parte do seu dia. Precisamos de um governo que entenda que a escola é mais um
instrumento e não o único”, afirma, indicando que “militarizar” as instituições
não resolve o problema. “A sociedade precisa repensar seu papel e a escola
precisa dialogar com isso. Agora, que me desculpem os policiais, mas quem tem
que atuar nas escolas, são os professores”, complementa.
Para
Cristiano Novaes Rezende, docente do departamento de filosofia da Universidade
Federal de Goiás (UFG), militarizar as escolas é perder o espaço próprio para a
produção da paz em nome da mera ausência de guerra, posto que as duas não devem
ser confundidas. “Assim como a saúde não é a ausência de doenças, a paz não é a
ausência de guerra. Enquanto o governo goiano atuar a partir do viés da
erradicação da violência, não trabalhará propriamente pela promoção da paz, que
encontraria nas escolas o âmbito ideal para ser gerada”, explica.
Fonte: Brasil de Fato
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