1964 - Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em São
Paulo
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Ruy Medeiros
Leio que pretendem reeditar, 50
anos após, “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”.
Não repito a tão citada frase
de Marx sobre fatos que só na aparência se repetem: tragédia e farsa.
No entanto não posso deixar de
fazer algumas perguntas sobre o cortejo que se anuncia.
Com Deus? Que Deus? O Deus de
uma sociedade autoritária, criado para introjetar medo nas consciências e
justificar torturas, exclusão, banimento e morte? Percebeu-se (e muitos crentes
depois sentiram-se ludibriados) que aquele deus da marcha programada por
golpistas era exatamente o que determinava não conviver, pois queria a
separação; não dialogar, pois desejava a imposição de voz única; não respeitar
a integridade física ou moral, pois ansiava torturar. Mas milhares de imagens,
manipuladas, em vários lugares falavam em deus, na salvação da cultura
ocidental cristã e da família. Na Bahia, bem me lembro, o Padre Peyton e a
primeira dama, com gente da TFP desfilando. Milhares de pessoas aos quais certa
imprensa, IBAB, IPES, Cruzada Anticomunista, etc, exaustivamente buscavam
condicionar o mais escondido escaninho da consciência, ali estavam crentes que
preparavam o reino de Deus e a defesa da família: “a família que reza unida,
permanece unida”, diziam. Unida, como, se a fome separava seus membros, cada um
migrando, indo para longe à procura do pão?
Melhor seria dizer, com muitos,
porém desarmados, que anunciavam: “a família que tem comida permanece unida”.
Mas que família? Aquela família
que depois os golpistas dilaceraram? A família de tantos religiosos que foram
torturados? Certamente não era a família dos pobres e miseráveis, nem a família
daqueles que não compactuavam com o crime e por isso protestaram. Familiares de
muitos que marcharam com o Padre Peyton, viram suas famílias separadas por
grades, exílio, desaparecimentos (assassinatos, em verdade) e que, por isso,
não poderiam, se assim o desejassem seus membros, rezar unidas. Nem comer. Nem
falar. Nem viver. Nem representar. Nem recitar.
Que liberdade? A liberdade para
facínoras torturarem? A liberdade para suprimir vozes e liberdade daqueles que
pensavam de forma diferente dos sobas? A liberdade para agredir consciência,
inclusive a consciência de religiosos, famílias, velhos, jovens e crianças?
O momento de preparação do
golpe foi também sinistro. Não se estava a defender família, Deus, liberdade.
Estava-se preparando cerminho, como os fascistas sempre fizeram, com todo o
instrumental de convencimento disponível para o golpe. E o fizeram para
desencanto de muitos que logo se sentiram traídos, irremediavelmente enganados.
Li, em Fernando Arrabal (Carta
a Franco), que quando a falange organizou a grande procissão para comemorar a
vitória dos fascistas contra a República Espanhola, as pessoas contritas e
embasbacadas, seguiram dignatários religiosos e carros alegóricos. Pousados
nesses e em carros de combate estavam milhares de pombas que, só por milagre e
ordem divina, reverentemente não voavam. Depois, soube-se: O tendão das asas
das aves foram cortados. Nada de milagre. Engodo.
Inquieta-me a sinistra
lembrança da marcha que, em nossa história, tomou as tintas do sinistro e da
farsa. A reedição talvez seja pior, pois implica em desrespeito às famílias que
foram separadas pelas mortes sob tortura e outras mortes.
No entanto sei, muitos não
tinham condições de julgar, depois perceberam. Hegel disse que a coruja de
Minerva só alça o vôo ao entardecer. Mas, e aqueles que hoje podem julgar, por
que marcharão? Farão por vontade de serem idiotas, ou porque têm vocação para a
prepotência sobre si mesmo?
Fonte: Blog Ruy
Medeiros
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