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segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Revolucionários sem rosto: uma história da Ação Popular

Escrito por José Benedito Pires Trindade

Sexta, 14 de Março de 2014

O Volume 1: Primeiros Tempos do livro Revolucionários sem rosto: uma história da Ação Popular, do jornalista Otto Filgueiras, estará nas livrarias em setembro.

Com um total de 86 capítulos, divididos em dois volumes, o livro narra a saga dos 18 anos de atuação da Ação Popular, mas não é um livro-reportagem e muito menos de memórias. Otto não é personagem. Além de ser cabotinagem, ele diz que sua breve militância não teve qualquer importância.

O livro é baseado principalmente na história documental da Ação Popular e também, quando comprovado pelo autor, no relato oral de antigos dirigentes, militantes, simpatizantes e familiares dos personagens.

Ele comprovou documentalmente que, ao longo de sua trajetória, a Ação Popular aglutinou mais de 25 mil militantes, simpatizantes e pelo menos um milhar deles deslocados para trabalhar em fábricas e no campo. A organização foi uma das espinhas-dorsais da resistência ao regime militar.

A pesquisa e entrevistas para o livro foram iniciadas há 28 anos, em 1986, mas ele só conseguiu concretizá-las a partir de 2001, quando começou a trabalhar em tempo integral no projeto, viajou uns 100 mil quilômetros pelo Brasil, principalmente de ônibus, entrevistou mais de 200 ex-dirigentes, ex-militantes e ex-simpatizantes da AP, familiares de militantes, advogados e ativistas de outras organizações, resultando em mais de 700 horas de fitas gravadas e todas transcritas.

Embora as entrevistas sejam importantes no resgate da história oral, e particularmente para captar a emoção dos personagens envolvidos com a AP, o jornalista teve o cuidado de checar o que disseram mais de duas centenas de entrevistados sobre vários episódios, e só usa as informações apuradas nos relatos orais quando a pessoa de fato participou dos acontecimentos que narra, mas sempre os subordinando ao contexto da história do pensamento teórico, ideológico, político e prático da organização. E, mesmo assim, depois de confirmados os relatos orais por outras entrevistas e, principalmente, pela história documental, que inclui centenas de documentos da organização e jornais das várias fases da AP.

Ao longo dos anos, Otto recolheu material documental dos arquivos dos antigos DOPS de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul e de outros estados; pesquisou o arquivo de Jair Ferreira de Sá (principal dirigente da AP), depositado no Arquivo Público do Rio de Janei, e recebeu da família dele o arquivo pessoal; examinou o arquivo de Jean Marc, militante da AP e presidente da UNE; estudou 49 processos da ditadura contra militantes da AP e outro tanto disponíveis no acervo Brasil Nunca Mais, depositado no Instituto Edgard Leuenroth, na Universidade de Campinas (UNICAMP). Percorreu ainda o arquivo do ex-dirigente da AP Duarte Brasil Lago Pacheco Pereira, também depositado na UNICAMP, onde resgatou e transcreveu a sua entrevista filmada de sete horas para Armando Boito, professor daquela universidade. E escarafunchou papéis do Arquivo Nacional,  no Rio de Janeiro.

Afinal,  como diz um conto samurai, “o pincel da escrita é um braço que se alonga da sepultura”.

De origem cristã, principalmente com influência de pensadores católicos humanistas Emmanuel Mounier, Teilhard de Chardin, Jacques Maritain, do padre Louis-Joseph Lebret e do padre brasileiro Henrique Lima Vaz, mas também influenciada por pensadores teóricos progressistas da igreja presbiteriana, a exemplo do pastor estadunidense Richard Shaull, a AP começou a ser articulada pela esquerda católica a partir de 1961, em Minas Gerais, quando surgiu o jornal Ação Popular.

Inicialmente, a Ação Popular era considerada apenas um movimento, mas com o tempo seus articuladores realizaram duas reuniões nacionais em 1962, primeiro em Belo Horizonte e depois em São Paulo, quando elaboraram os textos Estatuto Ideológico e Esboço do Estatuto Ideológico. Mas o seu congresso de fundação só aconteceu no carnaval de 1963, em Salvador (BA), na Escola de Veterinária da Universidade Federal da Bahia (UFBA), quando foi aprovado o seu “Documento Base”. Assim, a AP passou a ter um referencial teórico e se constituiu nacionalmente como organização política, embora sem registro legal jurídico.

O livro esmiúça toda a história da Ação Popular, os tantos embates internos que a leva da Igreja ao marxismo-leninismo. Entre as mais de 200 entrevistas que realizou, Otto conseguiu depoimentos de personagens históricos, a exemplo do Padre Henrique Lima Vaz, na época filósofo e principal teórico da esquerda católica, cujas ideias são decisivas para a fundação da organização e para a redação do Documento Base aprovado no primeiro congresso da AP, em 1963.

Com base na documentação encontrada nos arquivos, foi possível esclarecer também os assassinatos dos militantes e dirigentes da AP Jorge Leal Gonçalves, Raimundo Eduardo da Silva, Luiz Hirata, Paulo Stuart Wright, José Carlos da Mata Machado, Gildo Lacerda, Humberto Câmara, Honestino Guimarães, Eduardo Collier e Fernando Santa Cruz. O caso de Paulo Stuart Wright é um dos mais importantes: Paulo foi um dos principais dirigentes da AP,  também tinha origem cristã, a exemplo de vários outros dirigentes, no caso dele presbiteriana, e incorporou no seu pensamento as ideias do marxismo.

Otto narra no livro detalhadamente toda a articulação da repressão, comandada pelo Centro de Informações do Exército, CIE, que levou à prisão mais de 40 pessoas da AP, em agosto, setembro e outubro de 1973, e particularmente à prisão de Paulo Wright, entre os dias 4 e 5 de setembro daquele ano e, posteriormente, o seu assassinato e o assassinato de seis outros militantes da organização. Depois de assassinado no DOI-CODI de São Paulo, Paulo Stuart Wright foi enterrado pela polícia no Cemitério de Perus com o nome de Pedro Tim, mas seu corpo nunca foi encontrado e até hoje ele é dado como “desaparecido”.

O autor recolheu material inédito que ilustra o livro, inclusive fotos de militantes da AP, presos, alguns assassinados, e importantes documentos da repressão policial, entre eles os do Centro Nacional de Informação da Marinha (CENIMAR), do Centro de Informação do Exército (CIE), do Centro de Informação da Aeronáutica (CISA), do DOI-CODI de São Paulo e dos antigos DOPS, que esclarecem como ocorreu o cerco que os órgãos de repressão da ditadura fizeram sobre a AP durante a sua trajetória e sobre várias prisões e assassinatos de militantes da organização.

Para isso, o jornalista mergulhou nas centenas de milhares de páginas de depoimentos de presos políticos, de processos e de relatórios dos órgãos da polícia política do regime militar. Uma leitura que revela a grandeza e a miséria do comportamento dos militantes massacrados pela tortura. O relato disso tudo é, talvez, a mais perturbadora viagem às prisões do governo militar.

Otto não faz concessões, não cede, não capitula, não transige com a verdade ou com os princípios. Dos quantos livros sobre esse riquíssimo período da história, o livro de Otto talvez seja o mais autêntico testemunho da generosidade, da entrega e da bravura de uma geração de brasileiros. Sem espaços para o arrependimento, as lamúrias, a auto-complacência ou demonstrações de heroísmo.  E, notadamente, sem a fatuidade e a ligeireza que impedem uma reconstituição da verdade dos fatos, como, desgraçadamente, é o caso de várias obras sobre os anos 60, 70 e 80.

Mais ainda: ao historiar a trajetória da Ação Popular, Otto faz a crônica da própria esquerda brasileira, seus caminhos e descaminhos, as idas e vindas em um país e em um mundo convulsionados. E, ao iluminar o passado, Otto clareia o presente e mostra que a história de luta de AP não se conclui com sua extinção. Ela está nas ruas do Brasil e do mundo.

O livro conta ainda em detalhes as viagens de várias delegações de militantes e dirigentes da AP à República Popular da China, nas décadas de 1960 e 1970, para participar de cursos na Academia Militar de Nankin. Otto conseguiu, com um dos integrantes das delegações, Euler Ivo Vieira, em 2001, uma foto de militantes e dirigentes da AP com o primeiro-ministro chinês Chou En Lai.

Como base nos documentos encontrados na pesquisa, e também em livros autobiográficos já publicados, ele recuperou a trajetória de pessoas já mortas e que desempenharam papel importante na história da AP, a exemplo do sociólogo Herbert José de Souza, o Betinho.

O volume 1 aborda o período de 1930 a setembro de 1968. E o volume 2 vai até 1986. O primeiro volume tem 561 páginas e o volume 2 um outro tanto. O prefácio é do historiador Mário Maestri.

José Benedito Pires Trindade é jornalista.

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