Art. 29. O poder público poderá
adotar providências visando à celebração de acordos com a FIFA, com vistas à:
I - divulgação, nos Eventos:
(....)
b) de campanha pelo trabalho
decente; (grifou-se)
Ocorre que, de forma acintosa,
instituições dos poderes Executivo e Legislativo resolveram fazer letra morta
do compromisso e das normas constitucionais inseridas na órbita dos direitos
fundamentais de proteção ao trabalhador ao vislumbrarem a utilização da lei do
trabalho voluntário para a execução de serviços durante a Copa às entidades
ligadas à FIFA e mesmo aos governos federal e locais, institucionalizando,
assim, a figura execrável da precarização do trabalho, que se aproveita da
necessidade do trabalhador em benefício desmedido do poder econômico, reproduzindo
e alimentando, por torpes razões, a lógica do trabalho em condições análogas à
de escravo.
Lembre-se que o trabalho
decente é um conceito difundido pela Organização Internacional do Trabalho
exatamente para impedir a execução de trabalho sem as garantias trabalhistas.
Verdade que a legislação nacional (Lei n. 9.608/98), de discutível
constitucionalidade, permite o trabalho voluntário, sem a garantia dos direitos
trabalhistas, mas esse serviço, que pode ser prestado “a entidade pública de
qualquer natureza, ou a instituição privada de fins não lucrativos”, deve
possuir objetivos “cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos
ou de assistência social, inclusive mutualidade”.
Ora, a FIFA está longe de ser
uma entidade sem fins lucrativos e os serviços necessários à prática do futebol
durante a Copa do Mundo, evento que é, como se sabe, um dos mais lucrativos do
mundo, senão o maior, tendo sido este, aliás, o fundamento utilizado pelo
próprio governo para a realização da Copa no Brasil, estão, portanto, muito
distantes de se inserirem em algum dos permissivos legais acima destacados, sem
falar, é claro, das normas de proteção ao trabalho inseridas na ordem
constitucional como preceitos fundamentais.
A agressão à nação brasileira,
considerada na perspectiva de um Estado de Direito, organizado sob as bases da
essencial preservação da dignidade humana, é tão afrontosa que a FIFA não tem o
menor pudor em expressá-la em seu “site” oficial:
12 - O que eu vou receber por
trabalhar na Copa do Mundo da FIFA e nos seus eventos auxiliares?
• O trabalho voluntário é por
natureza um trabalho sem remuneração. Por conta disso, não haverá pagamento de
nenhum tipo de salário ou ajuda de custo para hospedagem. Porém, visando não
gerar ônus, o COL e a FIFA irão fornecer os uniformes, um auxílio para o
deslocamento até o local de trabalho (dentro da sede) e alimentação durante o
período em que estiver atuando como voluntário. (grifou-se)
13 - Qual a duração do turno
diário de trabalho voluntário?
• O turno diário de trabalho
voluntário durará até 10 horas. (grifou-se)
14 - Por quanto tempo preciso
estar disponível para o evento?
• É necessário ter
disponibilidade de pelo menos 20 dias corridos na época dos eventos.
15 - Existe alguma diferença
entre os tipos de voluntários?
• Existem algumas funções que
possuem requisitos muito específicos e, por isso, necessitam de conhecimentos e
habilidades específicas. Isso leva à criação de uma organização baseada em
Especialistas e Generalistas:
• Os especialistas atendem a
áreas como imprensa, departamento médico, serviços de idioma, etc.;
• Os generalistas atendem a
todas as outras áreas de trabalho e têm foco no atendimento ao público em
geral.
16 - Eu não moro em nenhuma das
sedes da Copa do Mundo da FIFA. Vou poder participar?
• A inscrição online pode ser
feita de qualquer local, mas é importante que as pessoas saibam que terão de
estar disponíveis para o trabalho no período determinado e na cidade na qual
forem alocados/escolherem, sabendo que o COL não proverá nenhum tipo de auxílio
para a hospedagem. (grifou-se)
(....)
18 - Os voluntários poderão
assistir aos jogos?
• Não serão disponibilizados
assentos para os voluntários. Alguns poderão estar trabalhando nas
arquibancadas ou em áreas com visibilidade para o campo, mas é importante
lembrar que estarão trabalhando e, por isso, não deverão ter tempo para
assistir aos jogos. Nos intervalos do seu horário de trabalho, no entanto,
poderão ir ao Centro de Voluntários, onde poderão assistir por alguns momentos
a alguma partida que esteja sendo transmitida.
Ou seja, por um trabalho
obrigatoriamente prestado por 10 (dez) horas diárias e em pé, já que “não serão
disponibilizados assentos para os voluntários”, realizado de forma tão intensa
ao ponto de não sobrar tempo para que os “voluntários” possam ver os jogos,
mesmo que estejam em área com visibilidade para os jogos, desenvolvido durante
“pelo menos 20 (vinte) dias corridos”, ou seja, sem qualquer interrupção, a
FIFA, “para não se onerar”, oferece, em contrapartida, “uniformes, um auxílio
para o deslocamento até o local de trabalho (dentro da sede) e alimentação
durante o período em que estiver atuando como voluntário”, de modo a
transparecer que os cidadãos brasileiros (ou estrangeiros) devem ser gratos
pela esmola concedida, até porque se der, segundo a visão da FIFA, “nos
intervalos do seu horário de trabalho” esses “voluntários” poderão ir ao Centro
de Voluntários, “onde poderão assistir por alguns momentos a alguma partida que
esteja sendo transmitida”, ou seja, com sorte, conseguirão assistir um pouco da
partida pela televisão, o que todos os demais cidadãos do mundo terão acesso
gratuitamente, sem sair de casa.
O pior é que de forma
vergonhosa o governo brasileiro se alia a essa ofensa à ordem constitucional
brasileira e vislumbra dela também se valer, atendendo a seus interesses
políticos e econômicos, pois já declarou, publicamente, que pretende utilizar o
trabalho de até 18 mil “voluntários”.
Assim, considerando que a
previsão dos “voluntários” para a FIFA é de 15 mil, é possível vislumbrar que
um dos legados certos da Copa seria o histórico de que durante a Copa ter-se-ia
evidenciado um estado de exceção constitucional quanto aos direitos
fundamentais trabalhistas, negando-se a condição de cidadania a pelo menos 33
mil pessoas (brasileiras ou não, cabendo não olvidar que na perspectiva dos
direitos trabalhistas a Constituição não faz nenhuma diferença entre
brasileiros e estrangeiros).
O problema concreto para o
governo brasileiro, para a FIFA e para os interesses econômicos em jogo é que a
comunidade jurídica trabalhista brasileira, representada por profissionais e
instituições, unidos no presente Manifesto, não vai permitir que essa agressão
à ordem Constituição seja consumada, ao menos não sem tensão e sem a fixação
histórica dos responsáveis pela prática em questão, para um julgamento
posterior.
Devemos, pois, usar todos os
instrumentos jurídicos e políticos que tivermos à nossa disposição, para
impedir esse atentado à ordem constitucional. Não pretendemos, nos limites
desse Manifesto, adentrar a discussão entre os que dizem “não vai ter Copa” e
os que afirmam “vai ter Copa”. O que estamos dizendo em alto e bom tom é: “Não
vai ter trabalho voluntário na Copa!”
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