Roberto Leher*
Terça, 21 de Janeiro de
2014
Com apoio ativo do governo
Dilma Rousseff, em especial de seu ministro da Educação Aloísio Mercadante, e
das lideranças partidárias da base do governo, foi aprovado no Senado o Plano
Nacional de Educação (PLC 103/12). A data de aprovação, terça feira, 17 de
dezembro de 2013, será lembrada como o dia em que o financiamento da educação
pública brasileira teve a sua qualificação “público” apagada em prol das
parcerias público-privadas, um anseio vivamente reivindicado pelas corporações
“de novo tipo”, que operam no setor de serviços educacionais e, avidamente,
pelas coalizões empresariais imbuídas de um projeto de classe difundido como de
salvação da educação brasileira.
É possível sustentar que o PNE
do governo Dilma expressa uma mudança estrutural na educação brasileira,
consolidando um objetivo que não pode mais ser confundido com o dos
proprietários tradicionais das escolas privadas ou o da Igreja católica,
sujeitos importantes nos embates da LDB de 1961; antes, afirma os anseios do
setor financeiro que atualmente se apropria de vastos domínios dos negócios
educacionais e, como assinalado, do capital como um todo, engajado na
socialização “adequada” de mais de 55 milhões de crianças e jovens, como é
possível depreender da ação do Todos pela Educação (Evangelista e Leher, 2012).
A vitória de Lula da Silva
(PT), embora cercada de polêmicas, provocou considerável expectativa de que, ao
menos, uma agenda socialdemocrata de fortalecimento da educação pública,
gratuita, laica e universal poderia ser adensada conflituosamente no Estado
brasileiro. Desde o início de seu primeiro mandato, as sinalizações por meio de
projetos de lei e, principalmente, das medidas práticas, apontaram para outro
rumo, indicando que os interesses do setor privado-mercantil (e, mais amplamente,
do capital) seguiriam guiando a educação superior. O governo Lula da Silva
ousou uma ruptura com o padrão de apoio do Estado ao setor privado vigente no
período Cardoso: pela primeira vez, e contrariando o Artigo 213 da
Constituição, possibilitou com o Programa Universidade para Todos (PROUNI) o
repasse de recursos públicos também para as instituições com fins lucrativos,
já superiores a 80% do total de instituições privadas.
Objetivando ampliar o mercado
educacional, estagnado em virtude da concentração de renda, o governo Lula da
Silva aumentou os aportes de recursos públicos para o FIES, cuja taxa de juros
foi reduzida a perto de 30% da taxa básica de juros (SELIC): a diferença seria
coberta pelo Estado. A isenção tributária ao setor mercantil, possível com a
criação do PROUNI, abriu caminho para o ingresso dos fundos de investimento
(private equity) no setor educacional, possibilitando uma frenética onda de
fusões e aquisições, grande parte pelo capital estrangeiro, promovendo inédita
concentração e centralização das corporações educacionais.
Plano
Nacional de Educação e hegemonia do capital
O governo de Lula da Silva
elaborou o PNE (PL 8.035/2010) em conformidade com o mainstream da agenda educacional do capital, incorporando, na educação
básica, as proposições do TPE, os interesses das corporações educativas
(liberalização e acesso aos recursos públicos), os anseios do Sistema S
(controle da educação profissional) e os grandes delineamentos das agências
internacionais, notadamente no que se refere à avaliação centralizada e
referenciada nas competências (OCDE/PISA).
Em virtude de limites do
presente texto, a análise do PNE focaliza os aspectos políticos, abordando,
preliminarmente, a sua tramitação e as forças políticas envolvidas, o
financiamento e as redefinições entre o público e o privado.
O projeto original enviado pelo
governo Federal (PL 8.035/2010) previa, ao fim de 10 anos, 7% do PIB para
educação, sem explicitar que os recursos deveriam ser destinados à educação
pública:
Meta 20: Ampliar
progressivamente o investimento público em educação até atingir, no mínimo, o
patamar de sete por cento do produto interno bruto do País (PL 8.035/10).
Com tal formulação, o Projeto
de Lei postergaria a efetivação dos 7% do PIB, podendo manter os gastos ao
longo do decênio do novo plano nos mesmos patamares atuais (entre 4,5 e 5% do
PIB), mas atendia aos anseios privatistas da indiferenciação entre o público e
o privado, posição que coincidia com a proposta do TPE.
Com efeito, objetivando uma
educação funcional ao capital, o próprio intelectual coletivo das frações
burguesas locais dominantes (TPE) indicara uma elevação do percentual do PIB
aplicado na educação, recomendando a ampliação dos atuais 4,8% para 7% do PIB
em dez anos (percentual que fora aprovado no PNE de 2001, mas que foi vetado
por FHC, veto mantido por Lula da Silva), mas condicionando o aumento de verbas
à adoção das medidas gerenciais e pedagógicas afins à agenda do TPE.
É fato que desde o início da
tramitação do PL 8.035/2010 existiram pressões pelo aumento para 10% do PIB.
Esta reivindicação foi apresentada e fundamentada pelo Plano Nacional de
Educação: Proposta da Sociedade Brasileira elaborada no II CONED (1997).
Iniciativas como a Campanha
Nacional pelo Direito à Educação, um arco formalmente pluriclassista, mas com
uma agenda que, a despeito da atuação meritória na defesa do Custo Aluno
Qualidade e do financiamento para as instituições públicas, não difere
essencialmente da de seus patrocinadores, como a Fundação Ford, Instituto
C&A, Abrinq, Open Society Foundations (criada por George Soros para criar
melhores condições de transição dos antigos países comunistas para o livre
mercado e a sociedade aberta defendida por Popper (1)) e que, na prática, opera
como um lobby no Congresso, sem participação efetiva dos trabalhadores da
educação e da classe trabalhadora em geral; as mobilizações da esquerda
educacional (ANDES-SN, Esquerda da UNE, ANEL, ABEPSS), em especial pelo
Plebiscito Nacional: 10% para Educação Pública, Já!, bem como iniciativas de
caráter acadêmico (ANPED, CEDES), não foram capazes de criar uma polarização –
que se espraiasse por toda vida política nacional – que fortalecesse a consigna 10% do PIB para a
educação exclusivamente pública.
A despeito da fragilidade da
mobilização que não alcançou a criação de uma vontade nacional-popular, a
pressão se fez sentir na Câmara dos Deputados. Com efeito, os deputados,
operando a pequena política, promoveram mudanças na versão original (o número de
emendas ultrapassou 2,5 mil), sem, contudo, alterar o que é axial no PNE.
Cinicamente, o PSDB, partido que liderou a elaboração do PNE anterior (2001),
destroçando tudo o que poderia fortalecer o público, agora se somou à magra
representação parlamentar em defesa da educação pública, situação que, com
outras variáveis, possibilitou a aprovação, na Câmara, em junho de 2012, de uma
versão com os 10% do PIB para a educação pública, com a indicação de metas de
expansão da rede pública de educação tecnológica e superior, bem como a melhor
definição da União na garantia do Custo Aluno Qualidade (CAQ).
Uma vez enviado ao Senado, em
meados de 2012, o projeto passou por três Comissões: Assuntos Econômicos (CAE),
Constituição e Justiça (CCJ) e Educação (CE). Já na CAE, o projeto da Câmara
sofreu mudanças regressivas, como a explicitação de que ampliação de vagas
deveria se dar por meio de parcerias público-privadas (PROUNI, FIES etc.) e, na
CCJ, em setembro de 2013, o relator, Senador Vital do Rêgo (PMDB-PB), empreendeu,
de modo mais sistemático, as mudanças desejadas pelo governo Dilma, em
particular, indeterminando o uso das verbas públicas para a educação que, em
sua versão, não continha o adjetivo pública, abrindo caminho para a
indiferenciação público-privado, retirando qualquer explicitação sobre como os
entes federados contribuirão para que os 10% sejam possíveis, afastando a União
da responsabilidade pela complementação do custeio do CAQ. Os exemplos a seguir
ajudam a melhor compreender o sentido das mudanças desejadas pelo governo
Dilma:
No
texto da Câmara, a Meta 11 assim ficou redigida:
Meta 11: Triplicar as
matrículas da educação profissional técnica de nível médio, assegurando a
qualidade da oferta e pelo menos cinquenta por cento da expansão no segmento
público.
Na
CAE, e no relatório Vital do Rego (CCJ), a meta foi assim reescrita:
Meta 11: triplicar as
matrículas da educação profissional técnica de nível médio, assegurando a
qualidade da oferta e pelo menos cinquenta por cento de vagas gratuitas na
expansão (2).
O segmento público é
substituído pelas vagas gratuitas, ofertadas pelo PRONATEC estruturado a partir
da base do Sistema S, e com parcerias com as organizações privado-mercantis do
setor. A mesma orientação pode ser vista na expansão da educação superior. O
público, aqui, igualmente cede lugar ao privado.
Texto aprovado na Câmara: Meta
12: Elevar a taxa bruta de matrícula na educação superior para cinquenta por
cento e a taxa líquida para trinta e três por cento da população de dezoito a
vinte e quatro anos, assegurada a qualidade da oferta e expansão para, pelo
menos, quarenta por cento das novas matrículas, no segmento público.
O
texto da CCJ do Senado assim reescreveu a Meta 12:
Meta 12: elevar a taxa bruta de
matrícula na educação superior para cinquenta por cento e a taxa líquida para
trinta e três por cento da população de 18 (dezoito) a 24 (vinte e quatro)
anos, assegurada a qualidade da oferta e gratuidade para, pelo menos, quarenta
por cento das novas matrículas.
Mas a medida de maior alcance
para o futuro da educação pública, e que poderá, a médio prazo, ressignificar a
educação pública propriamente dita, foi, como assinalado, a supressão do
adjetivo “público” no texto do PNE aprovado pela CCJ do Senado, patrocinada
pelo governo Federal.
A versão aprovada pela Câmara
foi assim redigida:
Meta 20: Ampliar o investimento
público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de sete
por cento do Produto Interno Bruto (PIB) do país no quinto ano de vigência
desta Lei e, no mínimo, o equivalente a dez por cento do PIB ao final do
decênio.
O
texto do Senador Vital do Rego na CCJ, estabelece:
Meta 20: ampliar o investimento
público em educação de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% (sete por
cento) do Produto Interno Bruto – PIB do País no quinto ano de vigência desta
Lei e, no mínimo, o equivalente a 10% (dez por cento) do PIB ao final do
decênio, observado o disposto no § 5º do art. 5º desta Lei.
O que motiva o governo Federal
patrocinar tal alteração (que, neste aspecto, restabelece o texto original do
PL 8.035/10) é que, com a redação da CCJ (e aprovada pelo Senado), os gastos
públicos podem ser indistintamente aplicados na educação pública e educação
privada. Todas as principais medidas educacionais dos governos Lula da Silva e
Dilma funcionam com parcerias: PROUNI, FIES, PRONATEC, Ciência Sem Fronteiras,
Lei de Inovação Tecnológica, Creches etc. Com tal redação, um novo capítulo da
educação brasileira será escrito e nele a concepção de público estará corroída
pelas parcerias público-privadas.
No apagar das luzes de 2013, a
bancada governista, majoritária, restabeleceu, por meio da sistematização do
líder do governo, Eduardo Braga (PMDB-AM), os principais pilares do texto da
CCJ, mantendo, novamente, a destinação escalonada dos 10% (que na prática pode
resultar em um investimento médio no decênio inferior a 8% do PIB)
indistintamente para a educação pública e para a educação privada, bem como com
os demais retrocessos do texto da CAE/CCJ e da versão original do PL 8.035/10.
Em defesa do relatório do Senador Vital do Rego (PMDB-PB) aprovado na CCJ, o
Senador Eduardo Braga (PMDB-AM (3)) sintetizou o rocambolesco argumento
governamental em prol da supressão do “público” na definição da destinação dos
10% do PIB para a educação: não importa se as vagas são de instituições
públicas ou privado-mercantis, vagas gratuitas, ainda que em corporações
controladas por bancos e fundos de investimento multinacionais, compradas com
verbas públicas, são públicas! Segue o senador: “e todos sabemos que o setor
público não poderá atender as demandas futuras por educação.
O exótico argumento foi
esgrimido anteriormente por Tarso Genro e praticado na gestão Fernando Haddad.
Ambos, desde 2004, vêm insistindo que não cabe mais a oposição entre o público
e o privado. A educação, em suas políticas, deve ser pensada como um ‘bem público’,
isto é, gratuito para os pobres e, por isso, pouco importa se ofertada por
empresas ou pelo Estado.
Corolário implícito: está dado
que o setor privado é reconhecidamente mais eficiente no uso das verbas
públicas e, por isso, é necessário fortalecer o Fundo de Financiamento
Estudantil (FIES), o Programa Universidade para Todos (PROUNI), o Programa
Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC) e, mais
especificamente, na educação básica, a compra de materiais pedagógicos de
corporações como as do Grupo Pearson, maior grupo editorial do mundo e
proprietário de meios de comunicação influentes nos setores dominantes mundiais
como Financial Times e The Economist, a contratação dos “parceiros” do Todos
pela Educação (4) para cuidarem dos assuntos educacionais da rede pública, por
meio de iniciativas como Alfa e Beto, Roberto Marinho, Ayrton Senna, entre
outras organizações empresariais.
As repercussões da aprovação do texto do PNE
defendido pelo governo Dilma ultrapassarão as fronteiras nacionais. Na prática,
o Brasil será um dos primeiros países do mundo a aderir ao preceito
reivindicado por um seleto grupo de países (5) no âmbito do Acordo Mundial de
Comércio de Serviços da Organização Mundial do Comércio de que não cabe mais a
distinção entre o público e o privado. Com o apagamento da diferença entre o
público e o privado, as corporações poderão ter livre acesso aos recursos
públicos, pois operam um negócio que pode ser inserido no rol dos “bens
públicos”. Assim, a tendência atual de deslocamento de capital de bancos,
fundos de investimentos, fundos de pensão, para atuar no promissor setor dos
negócios educacionais, poderá ser muito intensificada, pois o acesso aos
recursos públicos, já muito significativo na educação superior com o FIES e o
PROUNI, agora poderá ser muito maior, pois o grosso dos recursos, até então
vinculados à educação básica pública, agora será disponibilizado também para o
setor privado-mercantil.
Perspectivas
para 2014
Caso o PNE vá a voto em 2014,
apesar do ano eleitoral, sem mobilização massiva, nos moldes das Jornadas de
Junho de 2013, a hipótese de que a Câmara irá mudar de posição, aprovando o
texto do Senado, pode ser confirmada. É preciso considerar o empenho do governo
Dilma e, ainda, a larga base governista e seu histórico vínculo com a educação
privada – seja empresarial, seja confessional. O mesmo aconteceu na LDB em
1996: o projeto da Câmara era mais favorável à educação pública (pois os
deputados em geral sentem mais a pressão dos movimentos sociais, como o FNDEP),
o do Senado, mais sensível às pressões do capital e do executivo federal, era
um hostil à educação pública. Na votação final, igualmente perto das festas
natalinas, prevaleceu amplamente o projeto do Senado.
Como assinalado ao longo do
texto, a questão educacional mudou de escala. A defesa da educação pública não
pode mais ser realizada apenas por professores, estudantes e técnicos e
administrativos organizados em seus sindicatos ou nas entidades acadêmicas. A
avaliação de Florestan Fernandes sobre as lutas educacionais realizada nos anos
1980 é mais atual do que nunca: é preciso um novo ponto de partida para as
lutas em prol da educação pública. O novo ponto de partida decorre do fato de
que a causa da educação pública não será mais compartilhada por trabalhadores
aliados aos setores burgueses ditos progressistas ou modernos. Já na LDB de
1961, Florestan Fernandes constatou que não havia frações burguesas relevantes
engajadas na defesa da educação pública, pois a burguesia, como classe, estava
associada ao capitalismo monopolista. Nos tempos atuais, essa situação somente
se agravou: não há resquícios de frações burguesas envolvidas na construção de
um sistema público de cariz republicano.
As condições objetivas para um
novo ponto de partida estão sendo forjadas nas lutas que ganharam vida nas
greves das Federais de 2012, nos embates do MST em prol da Pedagogia do
Movimento, nas greves da educação básica que transtornam o país em 2011, 2012 e
nas ásperas jornadas das greves no Rio de Janeiro em 2013 e, mais amplamente,
nas multidinárias manifestações de junho de 2013.
Somente com trabalho político
deliberado tais condições podem ser realizadas. Não bastam as lutas esparsas. É
preciso organização, projeto educacional autônomo frente aos da agenda
dominante, formação política consistente e atuação no espaço público. Visitas
de convencimento aos parlamentares patenteiam, como alertou Florestan Fernandes
nas lutas pela LDB, a estratégia dos fracos. Frente ao que pode ser uma derrota
de profundas consequências para a juventude explorada e expropriada, e ao
próprio futuro da educação pública, os atos políticos dos movimentos em prol da
educação pública podem ser magnificados a ponto de imporem um outro porvir para
a educação brasileira. As mobilizações nas ruas, praças, escolas, universidades
podem alterar os rumos desejados pelo capital. Essa é a melhor aposta para
2014!
Notas:
1)
http://www.opensocietyfoundations.org/about, acesso em 3/01/14.
2) Ver VOTO EM SEPARADO perante
a COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO E JUSTIÇA - CCJ, sobre o Projeto de Lei da Câmara nº
103/2012, que dispõe sobre o Plano Nacional de Educação e dá outras
providências (Senador Randolfe –PSOL/AP).
3)
http://www12.senado.gov.br/noticias/videos/2013/12/veja-como-foi-a-votacao-em-plenario-do-plano-nacional-de-educacao,
acesso em 18/12/13.
4) Olinda Evangelista e
Roberto Leher, ver Nota 4.
5) Documento S/CSS/W/23, de 18
de dezembro de 2000, dirigido ao Conselho de Comercio de Serviços da OMC, os
Estados Unidos e outros países, apresentaram uma proposta de liberalização dos
serviços educativos, abrangendo a formação e a avaliação.
Leia também:
* Professor Titular de
Políticas Públicas em educação da Faculdade de Educação da UFRJ e de seu
Programa de Pós-Graduação, colaborador da ENFF e pesquisador do CNPq.
Fonte: Correio
da Cidadania
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