Para o sociólogo Ricardo Antunes,
legislação trabalhista, que completa sete décadas neste ano, trouxe ganhos na
área social, mas representou perdas para o sindicalismo
Patrícia Benvenuti
29/04/2013
Em 1º de maio, a Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT) completará 70 anos. Criada por Getúlio Vargas em
1943, durante o Estado Novo, o texto unificou toda a legislação trabalhista
então existente no Brasil, regulamentando as relações individuais e coletivas
do trabalho.
Em entrevista ao Brasil de
Fato, o professor titular de Sociologia do Trabalho da Unicamp Ricardo Antunes
faz um balanço da legislação trabalhista e comenta a recente aprovação da
chamada PEC das Domésticas. “É uma herança da escravidão que finalmente começa
a ser abolida”, afirma.
A CLT nasceu em um contexto
muito particular: a vitória de Vargas na chamada ‘revolução’ de 30 e em um
rearranjo importante dentro das classes dominantes no Brasil, onde se gestou um
projeto industrializante. Na sua origem, a CLT consolida, em 1943, toda a
legislação social do trabalho iniciada entre 1930 E 1943.
Essas lutas por direitos existem
desde o final do século XIX, quando você já tem notícia de ampliação das
greves. Esse movimento se ampliou no século XX, basta lembrar da grande Greve
Geral de 1917. A classe trabalhadora exigia e lutava por uma melhor
regulamentação do trabalho e da jornada de trabalho. Só que o varguismo foi
muito inteligente: fez com que uma reivindicação operária fosse entendida como
sendo uma doação do Estado, ou seja, ele criou o chamado mito do pai dos
pobres, o Estado bem feitor. A classe operária exigia, e o Vargas respondia
criando essa legislação. Mas não como uma resposta a uma demanda, e sim como
sendo uma antecipação do criador, daí o mito getulista. No projeto varguista,
não haveria nenhum projeto industrial no Brasil sem regulamentação do trabalho.
Por exemplo, a legislação que estabelecia o salário mínimo é uma condição
fundamental para você estabelecer um patamar mínimo garantidor da exploração da
força de trabalho.
No que concerne à legislação
social do trabalho, a CLT contemplou uma série de direitos do trabalho muito
positivos. Porém, aí vem a outra face: no que concerne à legislação
propriamente sindical, ela tinha um sentido claro de controlar, coibir e
eliminar o sindicalismo autônomo, que existia no pré-30, como a União Operária
Metalúrgica, União dos Trabalhadores Gráficos. Foi uma forma de quebrar o
sindicalismo autônomo. Consequentemente,a CLT não é positiva para os
trabalhadores porque cria um sindicalismo de Estado que elimina, ceifa,
constrange e dificulta a possibilidade de uma luta autônoma operária. Não é por
acaso que muitos sindicalistas diziam que a Constituição de 37, no que concerne
á questão do trabalho, era uma súmula da Carta Del Lavoro do fascismo italiano.
Ela trouxe uma estrutura sindical verticalizada, burocratizada, centralizada e,
no limite, estatizada. Com a Constituição de 88, muito da estrutura sindical
atrelada ao Estado foi eliminada, mas não é por acaso que se manteve, a
unicidade sindical e o imposto sindical, que são elementos que impedem o
sindicalismo autônomo hoje.
Eu não sou a favor do sindicato
único reconhecido por lei. Sou favorável a que haja um princípio da unidade
sindical – se pudermos ter um sindicato, melhor; mas não por imposição do
Estado. Tem que ser por uma vontade autônoma dos trabalhadores. Sou inteiramente
a favor da Convenção 87 da OIT [Relativa à Liberdade Sindical e à Proteção do
Direito de Sindicalização], mesmo sabendo que isso vai trazer um
embaralhamento. Mas tem muitas confederações que são puramente pelegas e vão
desaparecer. E isso vai obrigar o sindicalismo a criar seus organismos
autônomos.
Setenta anos depois, o que os
capitalistas querem: acabar coma CLT, e eu sou inteiramente contra. Se
quisermos melhorar a legislação social do trabalho, vamos tomar a CLT como
padrão mínimo e aumentar os direitos, como acabamos de fazer agora com as
mulheres trabalhadoras empregadas domésticas.
Em relação ao tema da
flexibilização, qual sua opinião sobre o projeto de Acordo Coletivo Especial?
Sou inteiramente contra. É uma
visão neocorporativista de sindicato. No limite está dentro da lógica
neoliberal ‘cada um por si’. O negociado não pode vir sobre o legislado. Posso
até aceitar que você negocie acima do que a legislação exige. Se o índice
oficial de aumento de salário é 10, isso não impede que um sindicato forte
consiga 20, 30 ou 40. Se um sindicato é forte, isso tem que ser levado para o
conjunto. É um erro grave que cometeu o sindicato dos metalúrgicos do ABC, e
por isso foi e é enorme a grita no conjunto do país contra essa proposta.
Em que aspectos a nossa legislação
trabalhista ainda deixa a desejar?
Tenho insistido nos meus
trabalhos que nós temos uma nova morfologia do trabalho. Temos uma nova
configuração da classe trabalhadora. No passado, por exemplo, tínhamos uma
informalidade em um nível muito menor. Hoje a terceirização e a informalidade
são intensas no setor de serviços, na indústria, no comércio, no serviço
público. Hoje metade da classe trabalhadora brasileira é composta por mulheres.
Há países capitalistas avançados, no norte, onde o contingente feminino é de
mais de 60%. No setor de call center, mais de 70% é composto por mulheres e não
tem tradição de luta sindical porque é uma profissão muito nova, muito
diferente do sindicato dos telefônicos dos anos 60 e 70. Das trabalhadoras
domésticas, mais de 90% são mulheres, mais de 60% são negras e é evidente que,
como é uma profissão herança da escravidão e onde a burla e a informalidade
eram crescentes, os sindicatos não tinham força.
Então houve um processo grande
de terceirização, informalização, feminilização, [adoção de] tecnologias de
informação, trabalho doméstico, teletrabalho, trabalho part-time [emprego com horários reduzidos], e o que acabou
acontecendo: a nossa velha estrutura sindical verticalizada, burocratizada,
dependente do Estado, já não dá conta. Quem representa os desempregados?
Frequentemente os sindicatos até proíbem os desempregados de participarem de
assembleias porque eles não pagam a taxa de associação dos sindicatos. Até isso
[acontece]. Se o desempregado não tem o sindicato que o representa, ele tem que
criar um movimento como criaram na Argentina, o movimento social dos
desempregados, os piqueteiros. Ou seja, a possibilidade de autonomia e
liberdade sindical, que ainda não conseguimos, abriria novas formas de
organização desses trabalhadores. Sei que criaria uma situação difícil porque o
momento é adverso, e como se faz a transição é um debate. O que temos que
entender é que na Europa inteira, dos Indignados da Espanha aos Precários
Inflexíveis em Portugal, está se buscando formas de organização que o sindicato
já não dá conta. Quando o sindicato abarca e representa esses trabalhadores,
ótimo; quando o sindicato não consegue abarcá-los eles vão buscar outras formas
de organização. Estamos vendo isso surgir em várias partes do mundo.
Houve bastante resistência de
alguns setores da sociedade em relação à PEC das Domésticas. O que essa
resistência indica em relação á nossa sociedade?
Mostra que o patronato, seja
nas fábricas, nas empresas de serviços ou
nas casas, se puder retardar o direito do trabalho, vai retardar. Se
puder burlar, vai burlar. A burla é
constante no que diz respeito aos direitos do trabalho. As empresas de
terceirização frequentemente fecham, e os trabalhadores ficam sem direito
nenhum. E no caso das trabalhadoras domésticas, é bom lembrar, essa é uma
herança colonial, da sociedade escravista, patriarcal, senhorial. Quando o
trabalho escravo foi abolido, não foram os trabalhadores negros que foram para
as indústrias, que recorreram ao imigrante italiano, alemão, português,
espanhol, o imigrante branco. Os trabalhadores homens e mulheres negros,
ex-escravos, foram trabalhar nas casas. Então foi um prolongamento do trabalho
escravo dentro das famílias. Quando essas famílias mais ricas, com o processo
de modernização capitalista, preferiram se transferir para as cidades,
trouxeram para as cidades essa herança escravista. As classes médias também
reproduziram isso. Basta você ter um padrão de vida um pouco melhor que você
contrata uma empregada, um motorista. É uma herança da escravidão que
finalmente começa a ser abolida. As classes médias, principalmente os setores
mais conservadores, não conseguem imaginar que as trabalhadoras domésticas
também tenham direito de terem as conquistas que valem para o conjunto da
classe trabalhadora. É uma fotografia da mesquinhez e do nível da exploração
que caracteriza o capitalismo e as classes burguesas no Brasil.
Fonte: Brasil de Fato
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