A falácia da produtividade acadêmica (Fórum Permanente)
""Salami Science" é a prática de fatiar uma única descoberta, como um salame, para publicá-la no maior número possível de artigos científicos. O cientista aumenta seu currículo e cria a impressão de que é muito produtivo."
Por FERNANDO REINACH
27 de abril de 2013
Em 1985, ouvi pela primeira vez
no Laboratório de Biologia Molecular a expressão "Salami Science". Um
de nós estava com uma pilha de trabalhos científicos quando Max Perutz se
aproximou. Um jovem disse que estava lendo trabalhos de um famoso cientista dos
EUA. Perutz olhou a pilha e murmurou: "Salami Science, espero que não
chegue aqui". Mas a praga se espalhou pelo mundo e agora assola a comunidade
científica brasileira.
"Salami Science" é a
prática de fatiar uma única descoberta, como um salame, para publicá-la no
maior número possível de artigos científicos. O cientista aumenta seu currículo
e cria a impressão de que é muito produtivo. O leitor é forçado a juntar as
fatias para entender o todo. As revistas ficam abarrotadas. E avaliar um
cientista fica mais difícil. Apesar disso, a "Salami Science" se
espalhou, induzido pela busca obsessiva de um método quantitativo capaz de
avaliar a produção acadêmica.
No Laboratório de Biologia
Molecular, nossos ídolos eram os cinco prêmios Nobel do prédio. Publicar muitos
artigos indicava falta de rigor intelectual. Eles valorizavam a capacidade de
criar uma maneira engenhosa para destrinchar um problema importante.
Aprendíamos que o objetivo era desvendar os mistérios da natureza. Publicar um
artigo era consequência de um trabalho financiado com dinheiro público, servia
para comunicar a nova descoberta. O trabalho deveria ser simples, claro e
didático. O exemplo a ser seguido eram as duas páginas em que Watson e Crick
descreveram a estrutura do DNA. Você se tornaria um cientista de respeito se o
esforço de uma vida pudesse ser resumido em uma frase: Ele descobriu... Os três
pontinhos teriam de ser uma ou duas palavras: a estrutura do DNA (Watson e
Crick), a estrutura das proteínas (Max Perutz), a teoria da Relatividade
(Einstein). Sabíamos que poucos chegariam lá, mas o importante era ter certeza
de que havíamos gasto a vida atrás de algo importante.
Hoje, nas melhores universidade
do Brasil, a conversa entre pós-graduandos e cientistas é outra. A maioria está
preocupada com quantos trabalhos publicou no último ano - e onde. Querem saber
como serão classificados. "Fulano agora é pesquisador 1B no CNPq. Com 8
trabalhos em revistas de alto impacto no ano passado, não poderia ser
diferente." "O departamento de beltrano foi rebaixado para 4 pela
Capes. Também, com poucas teses no ano passado e só duas publicações em
revistas de baixo impacto..." Não que os olhos dessas pessoas não brilhem
quando discutem suas pesquisas, mas o relato de como alguém emplacou um
trabalho na Nature causa mais alvoroço que o de uma nova maneira de abordar um
problema dito insolúvel.
Essa mudança de cultura ocorreu
porque agora os cientistas e suas instituições são avaliados a partir de
fórmulas matemáticas que levam em conta três ingredientes, combinados ao gosto
do freguês: número de trabalhos publicados, quantas vezes esses trabalhos foram
citados na literatura e qualidade das revistas (medida pela quantidade de
citações a trabalhos publicados na revista). Você estranhou a ausência de
palavras como qualidade, criatividade e originalidade? Se conversar com um
burocrata da ciência, ele tentará te explicar como esses índices englobam de
maneira objetiva conceitos tão subjetivos. E não adianta argumentar que
Einstein, Crick e Perutz teriam sido excluídos por esses critérios. No fundo,
essas pessoas acreditam que cientistas desse calibre não podem surgir no
Brasil. O resultado é que em algumas pós-graduações da USP o credenciamento de
orientadores depende unicamente do total de trabalhos publicados, em outras o
pré-requisito para uma tese ser defendida é que um ou mais trabalhos tenham
sido aceitos para publicação.
Não há dúvida de que métodos
quantitativos são úteis para avaliar um cientista, mas usá-los de modo
exclusivo, abdicando da capacidade subjetiva de identificar pessoas talentosas,
criativas ou simplesmente geniais, é caminho seguro para excluir da carreira
científica as poucas pessoas que realmente podem fazer descobertas importantes.
Essa atitude isenta os responsáveis de tomar e defender decisões. É a covardia
intelectual escondida por trás de algoritmos matemáticos.
Mas o que Darwin tem a ver com
isso? Foi ele que mostrou que uma das características que facilitam a
sobrevivência é a capacidade de se adaptar aos ambientes. E os cientistas são
animais como qualquer outro ser humano. Se a regra exige aumentar o número de
trabalhos publicados, vou praticar "Salami Science". É necessário ser
muito citado? Sem problema, minhas fatias de salame vão citar umas às outras e
vou pedir a amigos que me citem. Em troca, garanto que vou citá-los. As
revistas precisam de muitas citações? Basta pedir aos autores que citem artigos
da própria revista. E, aos poucos, o objetivo da ciência deixa de ser entender
a natureza e passa a ser publicar e ser citado. Se o trabalho é medíocre ou
genial, pouco importa. Mas a ciência brasileira vai bem, o número de mestres
aumenta, o de trabalhos cresce, assim como as citações. E a cada dia ficamos
mais longe de ter cientistas que possam ser descritos em uma única frase: Ele
descobriu...
Fonte: O
Estado de S.Paulo
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