Por Lúcio Flávio Pinto
Cartas da Amazônia
dom, 7 de jul de 2013
É legal ou legítimo que uma
empresa privada tenha nos seus arquivos prontuários de pessoas que lhe
interessam, incomodam ou são seus inimigos? Pois a Vale, a segunda maior
mineradora do mundo, tem. Não se tratam de fichas, anotações ou clippings. A
designação que a empresa deu a esses registros personalizados é mesmo de
prontuários, consagrados pelo aparelho policial e tingidos de negro pelo
aparato de repressão.
O batismo não deixa de ser um
ato falhado, psicanaliticamente falando. O serviço de informações e
inteligência da maior empresa privada do Brasil, da qual o país depende como
nunca antes, é conduzido também por ex-agentes do serviço de informações do
governo, novos ou mais antigos, remanescentes da era do SNI e integrantes da
Abin, hibridismo da época da ditadura com a democracia.
A coordenadoria de serviços
especiais corporativos, ligada à auditoria interna, subordinada, por sua vez,
ao conselho de administração, foi criada em 2003. Seu objetivo era prevenir
perdas e combater fraudes dentro da empresa. Parece que a princípio ela se
circunscreveu a essa missão, mas logo deu início a atividades ilegais de
espionagem, recorrendo a grampos telefônicos, quebra de sigilo bancário e
invasão de privacidade. Além do pessoal próprio, utilizou consultorias privadas.
Em abril de 2010, a
“atualização do prontuário do jornalista Lúcio Flávio de Farias Pinto” custou
10 reais à Vale. Não sei o que esse prontuário contém, mas já há um mau
indício: colocaram um “s” excedente no meu sobrenome Faria.
Uma empresa do porte da Vale
precisa ter o seu setor de inteligência. Ele cuida de informações e
contrainformações para melhor atender a corporação na sua guerra de mercado,
que envolve espionagem. Boicote e sabotagem, e nas relações com o mundo
externo.
Mas desde que um ex-integrante
desse serviço, o gerente de inteligência André Almeida, demitido em março deste
ano por justa causa, repassou documentos que permitiram à revista Veja revelar
os intestinos da mineradora, a questão é saber se a Vale atua dentro de limites
legais ou os extrapola e viola, agindo como se fora uma entidade pública, com
direito de exercer o poder de polícia.
Quando o Serviço Nacional de
Informações, concebido pelo general Golbery do Couto e Silva, foi criado, logo
depois do golpe militar de 1964, que derrubou o presidente João Goulart, Carlos
Lacerda observou com maldade certeira que o SNI não funcionava às
segundas-feiras. Nesse dia poucos jornais circulavam – e não os mais
importantes. Os arapongas de então não podiam se armar de cola, papel e recortes
de jornais para preparar seus relatórios e informes. Não havia o que cortar e
colar.
Lacerda já estava avinagrado
com seus ex-colegas de golpe, preocupado com a perspectiva de jamais se
candidatar a presidente da república, a maior das suas aspirações, mas boa
parte do trabalho de inteligência é feito assim mesmo, através de análises de
informações correntes, sobretudo da imprensa.
Por sua própria razão de ser, o
Estado vai muito além desse ponto, com seus agentes nas ruas, infiltrações e
informantes, exercendo o poder de polícia que a sociedade lhe delega
formalmente. Mas uma empresa privada pode agir assim? O regime democrático é
compatível com esse procedimento?
A leitura de vários dos
documentos vazados pelo informante da revista Veja não surpreende. Os arapongas
da Vale também se baseiam em material da imprensa. Mas outros documentos dão a
nítida sensação de que são produzidos por órgãos oficiais, não com o propósito
legítimo de bem informar as autoridades públicas.
Estão contaminados pelo
interesse de bisbilhotar, de invadir a privacidade alheia e de colocar
etiquetas que definem e julgam os personagens visados, atribuindo-lhe carga de
ilicitude e ilegalidade. Não é uma observação olímpica: o olhar discrimina o
que vê como inimigos, merecedores, portanto, de punição. E assim eles são
tratados.
A relação dos entes que estão
sob a mira da inteligência da Vale compreende o MAB (que defende os atingidos
por barragens), MST, Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul, Fase,
Rede Brasileira de Justiça Ambiental, Instituto Rosa Luxemburgo, Forum Carajás,
Campanha Justiça nos Trilhos, Conlutas, Movimento dos Atingidos pela Vale, CUT
e Assembleia Popular, dentre outros.
A Vale não se restringe a
acompanhar a movimentação dessas entidades: manda espiões se infiltrarem em
suas atividades, com a missão de gravar, fotografar e anotar o que acontece.
Foi assim que agiu em relação ao 1º Encontro dos Atingidos pela Vale, que
acompanhou o lançamento da Caravana Minas, no Rio de Janeiro, em 2010.
Os líderes, identificados,
foram acompanhados pelo olheiro, que também esteve ao lado dos participantes do
encontro quando eles fizeram uma manifestação diante do condomínio de luxo em
que morava o então presidente da Vale, Roger Agnelli, na rua mais famosa de
Ipanema, a Vieira Souto.
As despesas com esse serviço
custaram à Vale, em abril de 2010, 184 mil reais. Parte desse dinheiro foi
gasto na inspeção de andares da sede da empresa, no Rio de Janeiro. O
escritório Norte absorveu R$ 25 mil. Uma equipe básica II precisou de R$ 859
para cobrir o seminário “O Maranhão de volta ao século XIX: grandes projetos e
seus impactos socioambientais”, em São Luiz. Um informante quilombola em
Barcarena saiu por quase R$ 4,4 mil. Naturalmente, esse informante é um espião.
Já os dois que atuam em Carajás e Parauapebas têm carteira assinada, cada um
deles recebendo R$3,7 mil..
Um ano depois, em abril de
2011, o mesmo serviço pulou para R$ 230 mil, com itens semelhantes. Mas a
presença na região norte, entre Pará e Maranhão, se tornou ainda mais forte:
além do informante quilombola de Barcarena e dos dois agentes de
Carajás/Parauapebas, surgiu um “colaborador e agente” em Marabá (a R$3,4 mil) e
uma rede em Açailândia (R$ 1,6 mil).
Ao que tudo indica, o frenesi
pela espionagem, interna e externa, abrangendo tanto aqueles considerados
inimigos da empresa quanto seus funcionários, dirigentes e até acionistas, foi
uma das marcas da gestão de uma década de Agnelli. Em março de 2012 as despesas
do setor diminuíram ligeiramente, para R$ 224 mil, embora mantendo a mesma
estrutura e reajustando os rendimentos das equipes.
Em setembro caíram mais, para
R$ 197 mil. Talvez, quem sabe, desinflem para um patamar saudável – e, mais do
que isso, legal. Mas para isso certamente é preciso iluminar as dependências sombrias
da antiga Companhia Vale do Rio Doce, que permanece estatal nas suas estranhas
impenetráveis.
Para dar consequência às
denúncias, o MST e a Justiça nos Trilhos entregaram um pedido formal de
investigação a várias instituições públicas. Mais recentemente, outra grande
empresa, o consórcio que arrematou a hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu, a
maior obra em andamento no país, também foi flagrado em atividade de espionagem
junto a grupos que se opõem à obra.
Esses dois são os exemplos mais
graves. Quantos, porém, existem no desconhecimento público? A crescente
promiscuidade entre os aparatos de segurança do governo e os das grandes
corporações econômicas parece ser crescente, talvez tão acentuado quanto no
período da ditadura, embora sem os mesmos objetivos, já que não há a repressão
política aberta, estatizada.
Mas há uma circulação de
pessoas entre os dois níveis de poder, desempenhando funções semelhantes ou, em
muitas situações, numa distinção que inexiste, embora formalmente devessem ser
separadas. O setor de segurança pública fornece quadros para a inteligência
corporativa e vice-versa. Essa circulação é perigosa. As dependências desse
aparato devem ser iluminadas e higienizadas.
Fonte: Br.notícias
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