"Se
escrevesse uma receita de bolo, eu teria de considerar", diz professora
que participou das correções.
O jornal Zero Hora publicou
nesta quinta (21) um relato estarrecedor de duas professoras que participaram
das correções do ENEM. De acordo com as informações obtidas pela jornalista
Letícia Duarte, a orientação recebida era a de fazer “vista grossa” aos erros
encontrados e “aprovar o maior número de pessoas”.
Abaixo um trecho da reportagem:
Arrependidas de terem
participado das correções do Enem, duas professoras gaúchas decidiram romper o
contrato de sigilo para revelar bastidores da prova. Pedindo anonimato, uma
delas detalhou nesta quarta-feira a ZH, por telefone, como teriam recebido
orientações para fazer “vista grossa” aos erros encontrados. Professora de
língua portuguesa há 12 anos, diz que a ordem é para “aprovar o maior número de
pessoas”:
Zero Hora – Que orientação
vocês receberam para as correções das redações?
Avaliadora – Recebemos uma
formação, fizemos exercícios pelos quais fomos avaliadas, tudo via online. Isso
partiu da Universidade de Brasília. Foram seis, sete semanas de atividades, para
os 8 mil avaliadores. No dia 14 de novembro, tivemos uma reunião em que foram
repassadas as verdadeiras orientações. Fomos orientados a esquecer tudo o que
se sabe, tudo o que se aprendeu, tudo o que se fez na formação. Deveríamos
considerar a ideia de que é para aprovar o maior número de pessoas. Eu e a
outra colega tentamos desistir, mas nosso grupo já estava um pouco defasado.
Como já tínhamos nos comprometido, ficamos.
(…)
ZH – Que tipo de coisas falaram
que se deveria fazer vista grossa?
Avaliadora – Por exemplo, num
texto, se aparecesse a palavra imigração ou imigrante, que era o tema, eu não
poderia anular. Eu deveria pelo menos dar um ponto. Se ele escrevesse uma
receita de bolo, mas pusesse imigração em algum momento, eu teria de
considerar, não poderia anular. Outra coisa que eu fiquei muito chocada: se
aparecesse um texto como poesia, ou narrativa, mas que tivesse a ver com o
tema, e que se eu sentisse que em algum momento ele estava defendendo de alguma
forma o ponto de vista dele, não poderia anular também, teria que dar um. A
grosso modo, a orientação era essa: não anulem, só em último caso. A forma como
fazem a seleção dos professores também é questionável. É tudo indicação.
Ninguém te pede diploma.
ZH – Não se exige comprovação
de formação dos professores?
Avaliadora –Não. Não existe.
ZH – Se alguém fingir que é
professor pode ser avaliador?
Avaliadora – Pode. Se ninguém
pede documentação… A inclusão parte de convites. Acho que funciona por ligações
políticas. Essas pessoas são convidadas a ocupar esses cargos mais elevados e
vão convidando pessoas que conhecem. Quem me convidou sabe que sou formada em
Letras e faço correção há mais de 10 anos… mas será que isso ocorre no Brasil
inteiro?
ZH – Eles chegaram a dizer
explicitamente que era para evitar dar nota baixa?
Avaliadora – Sim. Que era para
evitar, porque nos anos anteriores eles receberam inúmeros recursos, que
tiveram que responder na Justiça, e que isso onera a União. O tiro saiu pela
culatra. Me arrependo até de ter participado. Financeiramente não vale a pena.
Pagam R$ 1,90 por redação, tu tens uma meta diária de cem redações (3 mil
redações por mês)… para quem trabalha e gosta de fazer um trabalho qualificado
é bem complicado.
ZH – O processo é uma
enganação?
Avaliadora – Sim. É um enganar…
até o candidato, em relação a suas condições. Me considero enganada. Recebi
formação, manual que estudei, e numa reunião me dizem para esquecer tudo isso.
Fonte: Implicante
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