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domingo, 31 de março de 2013

O legado educacional do regime militar


Dermeval Saviani*



RESUMO
Este texto se propõe a uma retomada da política educacional e das realizações da ditadura militar no Brasil, pondo em destaque aspectos que se fazem presentes, ainda hoje, na educação brasileira. Eis os pontos destacados: vinculação da educação pública aos interesses e necessidades do mercado, que se efetivou na reforma universitária e especialmente no intento de implantação universal e compulsória do ensino profissionalizante; favorecimento à privatização do ensino, que ocorreu principalmente mediante as autorizações e reconhecimentos do Conselho Federal de Educação; estrutura de ensino decorrente da implantação de mecanismos organizacionais que se encontram em plena vigência; um modelo bem sucedido de pós-graduação implantado a partir da estrutura organizacional americana e da experiência universitária européia.
Palavras-chave: Estado e educação. Política educacional. Educação no regime militar.


No início da década de 1960, a sociedade brasileira vivia um momento de grande efervescência, que chegou a ser caracterizado como pré-revolucionário (Furtado, 1962). Os "anos JK" (1956-1960) foram um período de euforia desenvolvimentista, embalado pelo "plano de metas" e pelo slogan "50 anos em 5". O alvo da política posta em marcha era completar o processo de industrialização do país. O Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), criado pouco antes do governo de Juscelino, foi por ele encampado e encarado como a inteligência a serviço do desenvolvimento. No interior do ISEB era elaborada e, a partir dele, divulgada a ideologia nacionalista desenvolvimentista. Paralelamente ao ISEB, formulava-se no seio da Escola Superior de Guerra (ESG) a ideologia da interdependência, que coincidia com a doutrina da segurança nacional.
Enquanto o ISEB, de um lado, elaborava a ideologia do nacionalismo desenvolvimentista e a ESG, de outro, formulava a doutrina da interdependência, a industrialização avançava, impulsionada pelo governo Kubitschek, que conseguia assegurar relativa calmaria política, dando curso às franquias democráticas, graças a um equilíbrio que repousava na seguinte contradição: ao mesmo tempo em que estimulava a ideologia política nacionalista, dava seqüência ao projeto de industrialização do país, por meio de uma progressiva desnacionalização da economia. Essas duas tendências eram incompatíveis entre si, mas no curso do processo o objetivo comum agregava grupos com interesses distintos, divergentes e até mesmo antagônicos. Nessas condições, a contradição permanecia em segundo plano, em estado latente, tipificando-se na medida em que a industrialização progredia, até emergir como contradição principal quando se esgotou o modelo de substituição de importações.
De fato, em 1960, o modelo havia cumprido suas duas etapas: a primeira, correspondente à substituição dos bens de consumo não-durável (como, por exemplo, as indústrias têxteis e alimentícias), que, por não requerer grandes somas de investimento, foi possível instalar mais rapidamente, com base em capitais nacionais; e a segunda, referente à substituição dos bens de consumo durável (indústrias automobilísticas, eletrônicas, eletro-domésticas), cujas somas vultosas de capitais requereram o concurso das empresas internacionais. Completou-se, assim, o ciclo da substituição das importações: já não dependíamos mais das manufaturas trazidas do exterior. A meta da industrialização havia sido atingida. Logo, não fazia mais sentido lutar por ela. O que se ocultava sob o objetivo comum (a contradição de interesses) veio à tona quando o objetivo foi alcançado.
Efetivamente, se os empresários nacionais e internacionais, as classes médias, os operários e as forças de esquerda se uniram em torno da bandeira da industrialização, as razões que os moveram na mesma direção eram divergentes. Enquanto para a burguesia e as classes médias a industrialização era um fim em si mesmo, para o operariado e as forças de esquerda tratava-se apenas de uma etapa. Por isso, atingida a meta, enquanto a burguesia buscou consolidar seu poder, as forças de esquerda levantaram nova bandeira: nacionalização das empresas estrangeiras, controle da remessa de lucros, royalties e dividendos e as reformas de base (tributária, financeira, bancária, agrária, educacional). Esses objetivos propostos pela nova bandeira de luta eram decorrência da ideologia política do nacionalismo desenvolvimentista, que, entretanto, entrava em conflito com o modelo econômico vigente.
Nesse contexto, a sociedade se polarizou entre aqueles que, à esquerda, buscavam ajustar o modelo econômico à ideologia política e os que, à direita, procuravam adequar a ideologia política ao modelo econômico. No primeiro caso, tratava-se de nacionalizar a economia; no segundo, o que estava em causa era a desnacionalização da ideologia.
Na medida em que se ampliava a mobilização popular pelas reformas de base, com as Ligas Camponesas no meio rural, lideradas por Francisco Julião, os sindicatos de operários nas cidades, as organizações dos estudantes secundaristas e universitários e os movimentos de cultura e educação popular, mobilizou-se também a classe empresarial. Surgiu, então, em maio de 1959, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), a primeira organização empresarial especificamente voltada para a ação política. Sua finalidade explícita era combater o comunismo e aquilo que seus membros chamavam de "estilo populista de Juscelino". Em 29 de novembro de 1961, foi fundado o Instituto de Estudos Políticos e Sociais (IPES) por um grupo de empresários do Rio e de São Paulo, articulados com empresários multinacionais e com a ESG, por intermédio dos generais Heitor de Almeida Herrera e Golbery do Couto e Silva. Gobery foi o principal formulador da doutrina da interdependência na ESG. Em setembro de 1961, solicitou transferência para a reserva e, a partir de 1962, assumiu a direção do IPES. Enquanto o IBAD foi dissolvido pela justiça em dezembro de 1963, o IPES permaneceu em atividade por aproximadamente dez anos, até se autodissolver em junho de 1971.
Em suas ações ideológica, social e político-militar, o IPES desenvolvia doutrinação por meio de guerra psicológica, fazendo uso dos meios de comunicação de massa como o rádio, a televisão, cartuns e filmes, em articulação com órgãos da imprensa, entidades sindicais dos industriais e entidades de representação feminina, agindo no meio estudantil, entre os trabalhadores da indústria, junto aos camponeses, nos partidos e no Congresso, visando a desagregar, em todos esses domínios, as organizações que assumiam a defesa dos interesses populares.
A articulação entre os empresários e os militares conduziu ao golpe civil-militar desencadeado em 31 de março e consumado em 1º de abril de 1964. Saíram vitoriosas, portanto, as forças socioeconômicas dominantes, o que implicou a adequação da ideologia política ao modelo econômico. Em conseqüência, o nacionalismo desenvolvimentista foi substituído pela doutrina da interdependência. Consumou-se, desse modo, uma ruptura política, considerada necessária para preservar a ordem socioeconômica, pois se temia que a persistência dos grupos que então controlavam o poder político formal viesse a provocar uma ruptura no plano socioeconômico. Portanto, se a "Revolução de 1964" foi realizada para assegurar a continuidade da ordem socioeconômica, é inegável seu significado de "mudança política radical", atestada até mesmo pelo simples fato da permanência dos militares no poder por 21 anos, caso inédito na história política brasileira.
Controlando com mão de ferro, pelo exercício do poder político, o conjunto da sociedade brasileira ao longo de duas décadas, o regime militar deixou um oneroso legado cujos efeitos continuam afetando a situação social do país nos dias de hoje. Faz sentido, pois, retomar a política educacional e as realizações da ditadura militar no Brasil, pondo em destaque aspectos que se fazem presentes, ainda hoje, na educação brasileira. Na impossibilidade de explorar, nos limites deste artigo, todos os aspectos da questão proposta, este texto se concentrará nos seguintes pontos: vinculação da educação pública aos interesses e necessidades do mercado; favorecimento da privatização do ensino; implantação de uma estrutura organizacional que se consolidou e se encontra em plena vigência; institucionalização da pós-graduação.

Vinculação da educação pública aos interesses e necessidades do mercado
Consumado o golpe militar, o IPES se dedicou a organizar um simpósio sobre a reforma da educação. Preparado nos meses de agosto a novembro, o simpósio se realizou em dezembro de 1964.
Para orientar os debates do simpósio foi elaborado um "documento básico", organizado em torno do vetor do desenvolvimento econômico, situando-se na linha dos novos estudos de economia da educação, que consideram os investimentos no ensino como destinados a assegurar o aumento da produtividade e da renda. Em torno dessa meta, a própria escola primária deveria capacitar para a realização de determinada atividade prática; o ensino médio teria como objetivo a preparação dos profissionais necessários ao desenvolvimento econômico e social do país; e ao ensino superior eram atribuídas as funções de formar a mão-de-obra especializada requerida pelas empresas e preparar os quadros dirigentes do país (Souza, 1981, p. 67-68).
A orientação geral traduzida nos objetivos indicados e a referência a aspectos específicos, como a profissionalização do nível médio, a integração dos cursos superiores de formação tecnológica com as empresas e a precedência do Ministério do Planejamento sobre o da Educação na planificação educacional, são elementos que integrarão as reformas de ensino do governo militar.
Contudo, as realizações do IPES no campo da educação não se limitaram a esse simpósio. Um outro evento de maior magnitude e mais ampla repercussão foi o Fórum "A educação que nos convém". Nele se explicitaram mais claramente os aspectos constitutivos da visão pedagógica assumida pelo regime militar.
A iniciativa da organização do Fórum se pôs como uma resposta da entidade empresarial à crise educacional escancarada com a tomada das escolas superiores pelos estudantes, em junho de 1968. Durante os meses de julho, agosto e setembro, o IPES se dedicou à preparação do evento, que se realizou de 10 de outubro a 14 de novembro de 1968. Teve papel decisivo na organização do evento Roberto de Oliveira Campos, que havia sido ministro do Planejamento do governo Castelo Branco entre 1964 e 1967, situação em que definiu a política econômica do regime militar e implementou suas principais medidas. A ele eram submetidos os temas e os sumários das conferências e os nomes dos participantes a serem convidados.
O Fórum contemplou onze temas, sendo quatro abordando a educação de modo geral, seis tratando de "aspectos do ensino superior" e o último, definido como "conferência síntese", versou sobre os "Fundamentos para uma política educacional brasileira" (IPES/GB, 1969).
Percebe-se um sentido geral que perpassa o tratamento dos diferentes temas e que se encontra mais fortemente explicitado na conferência-síntese, especialmente no conjunto de sugestões apresentadas para o encaminhamento da política educacional do país. Este sentido geral se traduz pela ênfase nos elementos dispostos pela "teoria do capital humano"; na educação como formação de recursos humanos para o desenvolvimento econômico dentro dos parâmetros da ordem capitalista; na função de sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho atribuída ao primeiro grau de ensino; no papel do ensino médio de formar, mediante habilitações profissionais, a mão-de-obra técnica requerida pelo mercado de trabalho; na diversificação do ensino superior, introduzindo-se cursos de curta duração, voltados para o atendimento da demanda de profissionais qualificados; no destaque conferido à utilização dos meios de comunicação de massa e novas tecnologias como recursos pedagógicos; na valorização do planejamento como caminho para racionalização dos investimentos e aumento de sua produtividade; na proposta de criação de um amplo programa de alfabetização centrado nas ações das comunidades locais. Eis aí a concepção pedagógica articulada pelo IPES, que veio a ser incorporada nas reformas educativas instituídas pela lei da reforma universitária, pela lei relativa ao ensino de 1º e 2º graus e pela criação do MOBRAL.
Assim como os empresários ligados ao IPES operavam em articulação com seus colegas americanos e contavam com a sua colaboração financeira, também no planejamento e na execução orçamentária da educação estreitou-se a relação com os Estados Unidos, celebrando-se acordos de financiamento da educação brasileira com a intermediação da USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional).
É nesse contexto que, já a partir de 31 de março de 1965, foram assinados vários contratos de cooperação no campo do ensino entre o Brasil e os Estados Unidos, conhecidos como "Acordos MEC-USAID" (Arapiraca, 1982. p. 133-135).
Configurou-se, a partir daí, a orientação que estou chamando de concepção produtivista de educação. Essa concepção adquiriu força impositiva ao ser incorporada à legislação do ensino no período militar, na forma dos princípios da racionalidade, eficiência e produtividade, com os corolários do "máximo resultado com o mínimo dispêndio" e "não duplicação de meios para fins idênticos".
O marco iniciador dessa nova fase é o ano de 1969, quando entrou em vigor a Lei da Reforma Universitária (Lei n. 5.540, de 28 de novembro de 1968), regulamentada pelo Decreto n. 464, de 11 de fevereiro de 1969, mesma data em que foi aprovado o Parecer CFE n. 77/69, que regulamentou a implantação da pós-graduação. Igualmente, em 1969 foi aprovado o Parecer CFE n. 252/69, que introduziu as habilitações profissionais no currículo do curso de Pedagogia. Deve-se observar que, por meio do Fórum "A educação que nos convém", a entidade empresarial decidiu atuar como um grupo de pressão junto ao Estado, receando que a resposta do governo à crise do ensino superior não correspondesse às suas expectativas.
De fato, o governo havia instituído, em 2 de julho de 1968, um Grupo de Trabalho para elaborar o projeto de reforma universitária. Paralelamente, durante os meses de julho, agosto e setembro, o IPES se dedicou à preparação do evento, que se realizou de 10 de outubro a 14 de novembro de 1968. O projeto de lei da reforma universitária deu entrada no Congresso Nacional em 7 de outubro e foi aprovado em 6 de novembro de 1968, sendo a lei promulgada em 28 de novembro, porém com vários vetos, fazendo a assepsia dos dispositivos que não se coadunavam com os interesses do regime. Com o Decreto n. 464, de 11/02/1969, ajustou-se melhor a implantação da reforma aos desígnios do regime instaurado pelo golpe de 1964. Efetivamente, o artigo 2º do Decreto negava autorização para funcionamento de universidade ou estabelecimento isolado, mesmo quando satisfeitos os requisitos estabelecidos para sua criação, caso não correspondessem às exigências do mercado de trabalho. Tal determinação encontra-se em consonância com as recomendações do IPES enunciadas no fórum "A educação que nos convém".
Completando esse processo, foi aprovada, em 11 de agosto de 1971, a Lei n. 5.692/71, que unificou o antigo primário com o antigo ginásio, criando o curso de 1º grau de 8 anos e instituiu a profissionalização universal e compulsória no ensino de 2º grau, visando atender à formação de mão-de-obra qualificada para o mercado de trabalho.
Esse legado do regime militar consubstanciou-se na institucionalização da visão produtivista de educação. Esta resistiu às críticas de que foi alvo nos anos de 1980 e mantém-se como hegemônica, tendo orientado a elaboração da nova LDB, promulgada em 1996, e o Plano Nacional de Educação, aprovado em 2001.

Nota
1 Números obtidos a partir da Tabela 1 (Cunha, 1975, p. 28). Fonte: MEC-SEEC (Serviço de Estatística da Educação e Cultura).

Referências
ARAPIRACA, J.O. A USAID e a educação brasileira. São Paulo: Cortez; Campinas: Autores Associados, 1982.         [ Links ]
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Federal de Educação. Parecer n. 977/65, de 4/12/1965. Definição dos cursos de pós-graduação. Documenta, Brasília, DF, p. 67-86, 1965.         [ Links ]
CUNHA, LA. A expansão do ensino superior: causas e conseqüências. Debate & crítica, São Paulo, n. 5, p. 27-58, 1975.         [ Links ]
FURTADO, C. A pré-revolução brasileira. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962.         [ Links ]
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VIEIRA, S.L. O discurso da reforma universitária. Fortaleza: UFC; PROED, 1982.         [ Links ]

* Doutor em Educação e professor emérito da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail:dermevalsaviani@yahoo.com.br

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