Quarta, 30 de janeiro de
2013
“Vemos a utilização do
instrumento do endividamento público às avessas”, denuncia Maria Lucia
Fattorelli. Ex auditora fiscal da Receita Federal e presidente do Unafisco
Sindical (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal),
Fattorelli adverte que, se o instrumento de endividamento do Estado seria para
completar suas receitas, o que acontece é exatamente o oposto: o pagamento da
dívida tem tirado dos cofres públicos anualmente quase metade de seu orçamento.
Em 2011 a dívida pública absorveu R$708 bilhões, o equivalente a 45% do
orçamento da União e em 2012, a previsão orçamentária calcula que tenha sido em
torno de 48%. A dívida, paga por todos os cidadãos brasileiros, já supera o
valor de R$3 trilhões.
Da onde surgiu essa dívida? A
quem ela está sendo paga? O que o povo brasileiro ganha com isso? Por que ela
não para de crescer? Maria Lucia Fattorelli, formada em administração e
ciências contábeis, ajuda a responder essas e outras questões. Desde 2000, ela
integra o movimento Auditoria Cidadã, que investiga a dívida brasileira e
pressiona pela realização de uma auditoria oficial, prevista na Constituição
Federal mas nunca realizada. O movimento acaba de lançar um livro de estudos,
“A dívida pública em debate”, com o objetivo de popularizar a discussão a
respeito do tema, que, para eles, “é o nó que amarra o Brasil”.
Maria Lucia prestou assessoria
técnica à CPI da Dívida Pública realizada na Câmara dos Deputados em 2010 e
participou da auditoria oficial da dívida do Equador, que foi concluída em
2008. Com o resultado desse trabalho, que apontou diversas irregularidades, o
presidente Rafael Correa propôs aos credores pagar 30% do valor previsto para
resgatar todos os títulos.
Fattorelli aponta que o
processo de endividamento foi bastante similar em todos os países
latino-americanos e suspeita que boa parte da dívida brasileira, que surgiu nos
anos 1970, foi simplesmente para financiar a ditadura militar. E mais: salienta
a necessidade de investigar se, como aconteceu no Equador, a dívida brasileira
não tenha prescrito em 1992 e simplesmente sido ressuscitada pelo governo em
conjunto com integrantes do setor financeiro.
“Existe um sistema da dívida”,
ressalta: “Esse sistema atua no modelo político, econômico, no sistema legal e
na grande imprensa”. “Hoje a dívida está consumindo R$2,3 bilhões por dia”,
constata. “É isso que explica: o Brasil é a sexta potência mundial hoje, e ano
passado a ONU nos classificou em 84º lugar no índice de desenvolvimento
humano”.
A entrevista é de Gabriela
Moncau e publicada na revista Caros Amigos.
Eis a entrevista.
A
dívida pública brasileira já supera R$3 trilhões?
Se somarmos a dívida interna,
que está em R$2 trilhões e 637 bilhões, e a dívida externa, que está em U$422
bilhões, superamos os R$3 trilhões.
Você
já chegou a dizer que é melhor falar em dívida pública de maneira geral do que
em dívida externa ou interna. Por quê?
Um livro de economia diz que
dívida interna é a aquela contraída junto aos residentes no país. Se olharmos
na página do tesouro nacional, os dealers são um conjunto de 12 instituições
que tem o privilégio de comprar dívida em primeira mão, logo que o tesouro
nacional lança os títulos. Estão lá o Citibank, o JP Morgan, o Barclays, o
Deutsche Bank, o Royal Bank of Scotland, e por aí afora. Como se pode chamar
dívida interna uma dívida que vai direto para a mão de bancos estrangeiros? Por
isso dizemos que o mais correto é falar em dívida do setor público. Não existe
nacionalidade para o dinheiro. Temos que continuar usando a classificação interna
e externa porque na contabilidade pública está dessa forma, mas é preciso
considerar o conjunto, a dívida é pública.
Qual
a origem da dívida?
Se formos puxar o fio da meada,
o Brasil já nasceu endividado. Quando tivemos nossa independência decretada,
tivemos que assumir uma dívida que Portugal tinha contraído com a Inglaterra.
Mas para pegar esse último ciclo, que é o mesmo que perdura até hoje, ele
começou na década de 1970, durante a ditadura militar. Começa num período de
total falta de transparência, a parte que aparecia era a do tal “milagre
econômico”. Assumimos uma série de empréstimos externos para construir
hidrelétricas, siderúrgicas, vários investimentos de infraestrutura.
Só que durante a CPI da dívida
buscamos a explicação para a origem dessa dívida. E os contratos desses
investimentos explicam menos de 20% dos gastos com a dívida daquela época. E os
outros 80%? Fica uma suspeita: será que esse montante, ou pelo menos boa parte
dele, foram compromissos assumidos simplesmente para financiar o próprio
processo de ditadura militar? Estamos inclusive preparando para um contato com
a Comissão da Verdade para incluir em seus trabalhos a investigação sobre o
financiamento da ditadura. Quem bancou todos aqueles agentes internacionais que
ficavam aqui? Quem bancou aquela estrutura de espionagem, todas as viagens? A
maior parte dessa dívida foi junto a bancos privados internacionais. Não foi
dívida, por exemplo, com o FMI [Fundo Monetário Internacional], como muitos
brasileiros pensam.
Inclusive no governo Lula houve
propaganda de que o Brasil pagou tudo o que devia para o FMI e a ideia de que
portanto estaríamos livres de dívida externa.
Pois é. Isso aí surtiu o efeito
político no imaginário dos brasileiros de que dívida externa é sempre com o
FMI. E isso nunca foi fato. Todo o endividamento da década de 1970 foi
principalmente com esses bancos privados internacionais, que estavam com
excesso de liquidez. Ou seja: tinham um volume muito grande de moeda
disponível. Por quê? No dia 15 de agosto de 1971, um domingo, o presidente
Nixon simplesmente comunicou que não existiria mais a paridade do dólar com o
ouro. Isso permitiu que os EUA ligassem a maquininha e imprimissem qualquer
quantidade de dólar que quisessem. A essas alturas, 30 anos depois de Bretton
Woods, o mundo inteiro já tinha absorvido o dólar como moeda de trocas
internacionais.
Isso causou um excesso de
liquidez em poder dos bancos. Esses bancos vieram principalmente aos países da
América Latina e ofereceram empréstimos a taxas muito atraentes, em torno de
5%, no máximo 6% ao ano. Esses mesmos bancos privados comandavam o FED [Federal
Reserve Bank], que é o Banco Central norte-americano. Ele tem cara de
instituição pública, mas o conselho executivo é composto por 10 ou 12 bancos
privados, aqueles mesmos que eram os credores. Por volta de 1979 essas taxas
começaram a se elevar e chegaram a 20,5% ao ano. Em 1981 já ficou difícil de
pagar e em 1982 começou pelo México, seguiu pela Argentina, Brasil, Peru,
todos; entraram em crise.
Tem vários princípios de
direito internacional que amparam uma revisão caso as condições pactuadas sejam
transformadas. Muitos outros princípios foram desrespeitados, como o de
conflito de interesse: eram os mesmos bancos credores que comandavam as instituições
que determinavam a variação da taxa. Mas nenhum país nunca levantou essas
questões, isso que é gravíssimo.
E
o que aconteceu no momento da crise, nos anos 1980?
Nesse momento que vem o FMI,
para oferecer um empréstimo que garantisse o pagamento imediato daquele
período. Mas para garantir esse crédito, o FMI exigiu que cada país fizesse
acordos, transferindo as dívidas com esses brancos privados internacionais para
o Banco Central (BC).
Tanto as dívidas do setor
público quanto do setor privado foram transferidas a cargo do Banco Central. E
o mais grave: esse dinheiro que o BC assinou como devedor nunca veio para o
Brasil. Por exemplo, as empresas A, B, C do setor público e as empresas X, Y, Z
do setor privado tinham dívidas com bancos internacionais. O Banco Central
assumiu papel de devedor mas essas empresas já tinham recebido o dinheiro que
pegaram emprestado. Ele passou a ser devedor mas não recebeu esse dinheiro, ele
só assumiu o ônus da dívida. Isso é muito importante porque é um indício da completa
ilegitimidade dessa dívida. Como é que você tem uma dívida, que foi a
transformação de outra dívida que você nem tem prova dela, e mais, como é que o
BC assume uma dívida da qual ele nunca recebeu dinheiro? E nós é que temos que
pagar?
Por
que desde então esse valor não pára de crescer?
Por causa das condições
extremamente onerosas que foram impostas nesses acordos. A gente paga um pedaço
dos juros, e outro pedaço é incorporado ao capital. Então foi virando uma bola
de neve.
Na década de 1980 várias
comissões do Congresso Nacional discutiram isso. Uma comissão em 1983 que teve
um relatório brilhante, apontou verdadeiros crimes. Não deu em nada. Teve outra
comissão em 1987, no Senado, o relator foi o Fernando Henrique Cardoso. Não deu
em nada. Porém, como resultado de todo esse debate a respeito da dívida, entrou
na Constituição Federal, em 1988, a necessidade de fazer uma auditoria da
dívida. E logo depois foi formada uma comissão para fazê-la. Só que essa
comissão enfrentou gravíssimos problemas políticos e quase não conseguiu
trabalhar. O relatório foi do falecido senador Severo Gomes que fez uma breve
análise jurídica dos acordos da década de 1980, que ele considerou nulas de
pleno direito, cláusulas abusivas. Acho que todo brasileiro deveria ler o relatório
dele, é um relatório curto que está disponível na página na internet da
Auditoria Cidadã.
É um documento que tem um
parágrafo que eu sei quase de cor: “Esses acordos colocam o Brasil de joelhos
sem brios poupados, inerme e inerte, imolado à irresponsabilidade dos que
negociaram em nosso nome e à cupidez de seus credores. Renúncia de soberania
talvez nós tenhamos tido algumas, mas uma renúncia declarada à soberania do
país é a primeira vez que consta de um documento, faz dele talvez o mais triste
da história política do país”. Mais uma vez não deu em nada e a Constituição
não foi cumprida. E a dívida crescendo.
Existe
a suspeita de que essa dívida já tenha prescrito?
Sim, temos uma suspeita de que
em 1992 essa dívida passou por um processo de prescrição. Porque todos esses
acordos da década de 1980 foram firmados em Nova Iorque e a lei regente desses
acordos era a lei de Nova Iorque. Segundo essas leis, as dívidas prescrevem em
seis anos. Então, se eu tenho uma dívida com você e interrompo o pagamento,
você tem seis anos para me acionar. Seja administrativamente, seja
judicialmente. Se você não fez nada, dali a seis anos a dívida morreu,
prescreveu. Isso está previsto na lei norte-americana, chama estatuto de
limitações. Se uma parcela deixa de ser paga, isso provoca a antecipação do
vencimento de toda a dívida.
Em 1986, houve uma interrupção
de pagamento de juros daqueles acordos. A partir desse momento começou a contar
o prazo de prescrição. Passaram-se seis anos e não houve nenhuma exigência para
que o Brasil efetuasse esse pagamento. O BC não foi compelido por nenhuma ação
administrativa ou judicial a efetuar o pagamento. Então temos a suspeita de que
em 1992 a dívida prescreveu.
Por
que um governo optaria por ressuscitar uma dívida já prescrita?
Aí que está. Entra mega
corrupção, mensalão é grão de areia perto disso aí, e uma série de outras
coisas. Por que temos uma suspeita tão forte que isso tenha acontecido no
Brasil? Vários documentos que tivemos acesso no CPI da dívida mencionam um
contrato de renúncia que nunca apareceu. Mas em 1992 houve uma forte pressão no
Senado para aprovar uma resolução que autorizasse uma negociação no exterior.
Uma negociação de mais de 60 bilhões de dólares. A pressão para aprovar isso
foi tão forte que esse documento saiu do Ministério da Fazenda para o Senado e
em poucos dias foi aprovado, nesse mesmo dia já saiu parecer da Procuradoria da
Fazenda, foi tudo muito ágil.
Quem participou dessa comissão
que fez essa renegociação em 1992? Foi um contrato feito no Canadá, que nunca
apareceu. Um grupo de várias pessoas do Ministério da Fazenda e do Banco
Central participou, mas três nomes de destaque, que na época não tinham cargo,
eram tipo consultores do setor financeiro: Armínio Fraga, Pedro Malan e Murilo
Portugal. Essa negociação feita em 1992 permitiu que toda essa dívida com
bancos privados, proveniente desses questionáveis acordos da década de 1980,
fosse transformada em títulos, em papéis de dívida negociáveis no setor
financeiro, os tais bônus brady. Essa transformação se concretizou em 1994,
período em que, com a eleição do Fernando Henrique Cardoso, o Pedro Malan virou
Ministro da Fazenda, o Murilo Portugal virou presidente do tesouro e o Armínio
Fraga, presidente do Banco Central. Entendeu?
Essa conversão foi tão absurda
que ela foi feita em Luxemburgo, um paraíso fiscal, porque nenhuma bolsa de
valores regular aceitaria uma conversão desse tipo. Foi uma conversão direta,
não foram títulos que o Brasil ofereceu ao mercado e recebeu dinheiro em troca.
Mais uma vez, nenhum centavo entrou no país. Foi uma troca direta: de papel por
papel. E pagando juros, pagando taxas, pagando comissões, pagando encargos...
Por isso a dívida cresce sem parar. Simplesmente se assume uma dívida, sem que
o dinheiro entre.
É
um endividamento sem nenhuma contrapartida?
Sem contrapartida! Em 1994,
converteu em bônus brady, provavelmente ressuscitaram uma dívida morta – que
fique registrado que é uma suposição que temos, não encontramos ainda documento
que comprove. Temos indícios por conta da menção a um contrato de renúncia em
outros documentos e o paralelo que fazemos com o Equador. Porque todo o
processo foi idêntico: a dívida da década de 1970, os acordos da dívida nas
mesmas datas, a entrada do FMI em 1983, as exigências do FMI, o brady, tudo
igual.
Aqui no Brasil esses bônus
brady resultantes dessa conversão foram acatados como moeda na compra das
nossas empresas submetidas ao processo de privatizações. Então, além de assumir
uma dívida absurda porque dinheiro nunca entrou, as nossas empresas ainda foram
trocadas por esses papéis de dívida. E quando esses papéis de dívida externa
entram no tesouro, o que o tesouro fez? Trocou essa dívida por dívida interna.
E aí começa a bola de neve da dívida interna a partir de 1994.
Veio o plano real, com taxas de
juros interna altíssimas. Uma das táticas do plano real foi liberar totalmente
as importações para que o produto importado chegasse aqui bem baratinho e
forçasse as indústrias nacionais a baixar o preço, muitas até quebraram. Só que
aquela avalanche de importados tinha que ser paga. E como ser paga se o Brasil
não produz dólar? O país abriu para o investimento do estrangeiro na compra de
títulos da dívida interna, que paga os maiores juros do mundo. Tudo isso para
controlar a inflação. A dívida interna começou a dobrar a cada mês. Então veja
bem: dívida externa emitida para pagar dívida anterior e dívida interna para
sustentar o plano real.
Com tudo isso, eu pergunto:
qual o benefício para a nação? Pois essa dívida é paga por nós tanto com base
nos elevados tributos embutidos em tudo que consumimos como nos demais impostos
(de renda, de casa, de carro, etc). E cadê os serviços públicos a que temos
direito? Como está a educação, a saúde, o transporte? Uma dívida tem que ter
alguma contrapartida que justifique todo esse esforço dos cidadãos para
pagá-la.
A própria ideia de
endividamento público, na teoria, é para completar as receitas do Estado. Pelo
jeito o que acontece é o contrário, os recursos do Estado são só retirados.
Exatamente. É a utilização do
instrumento do endividamento público às avessas. Endividamento deveria servir
para aportar recursos à nação. Aí sim se justifica. Não, o endividamento
público se transformou num mecanismo de transferência dos recursos públicos
para o setor financeiro privado. A isso cunhamos um termo: existe um sistema da
dívida.
Isso é um sistema, tem
princípio, meio e fim. Aqui no Brasil, quais as principais metas atualmente?
Não são de bem estar social, de pleno emprego, etc. As metas do nosso modelo econômico
são superávit primário, metas de inflação. Quem se beneficia? O sistema da
dívida.
Para operar, o sistema da
dívida interfere no modelo político. O poder econômico é que elege a maior
parte dos representantes que estão lá na Câmara, no Senado, nas Assembleias
Legislativas. Quem financia as campanhas de quem vence as eleições?
Principalmente bancos e grandes corporações que tem um pezinho no setor
financeiro. Ao eleger, é claro que vão exigir uma postura na votação das leis,
nas medidas, nas licitações. Para operar, esse sistema garante um aparato de
membros do Legislativo e do Executivo que está na mão deles.
Isso é tão forte que agora na
Europa, com a crise, posso dar exemplo. Na Grécia, o primeiro-ministro
anterior, o Papandreou, resolveu fazer um plebiscito sobre aceitar os
empréstimos da troika em troca das medidas de austeridade. No dia que comentou
sobre esse plebiscito, ele foi obrigado a renunciar. E quem entrou no lugar
dele? Um tecnocrata do Goldman Sachs [Lucas Papademos]. Isso escancara como
atua o poder econômico no âmbito político.
O sistema da dívida garante
também um aparato legal que privilegia seu pagamento em detrimento de todos os
outros gastos sociais. Aqui no Brasil para isso foi votada a Lei de
Responsabilidade Fiscal. É claro que todo mundo quer que o setor público tenha
responsabilidade fiscal, agora se você for ler essa lei, você vê que ela
privilegia o pagamento da dívida sobre todos os outros pagamentos. Vamos supor
que diante de uma calamidade no Estado o governador escolha não pagar a dívida
naquele mês, para atender as vítimas da tal tragédia. Ele não tem essa opção.
Se fizer isso, a Lei de Responsabilidade Fiscal aplica o Código Penal,
criminaliza o gestor público que não priorizar o pagamento da dívida. Isso tudo
é modus operandi do sistema da
dívida. E é assim no mundo inteiro.
Também
houve durante o governo Lula medidas provisórias privilegiando o pagamento da
dívida?
Em 2008, com a desculpa da
crise. A medida provisória (MP) dizia que toda a sobra no orçamento de qualquer
rubrica que não for gasto durante o ano, no final do ano pode passar o rodo e
pagar a dívida. Por que não tem uma norma assim para a educação? Tudo o que não
for gasto, reverte no fim do ano para a educação. Existe uma norma assim para a
dívida. Foi a MP 435 e depois a MP 450.
O poder econômico opera também
na grande mídia. A grande imprensa não publicou nem uma linha sobre a CPI da
dívida. A maioria da população não fica sabendo. Então o poder econômico atua
principalmente no modelo econômico, político, no sistema legal e na grande
imprensa. Não é peixe pequeno, não. Hoje a dívida está consumindo R$2,3 bilhões
por dia. É isso que explica: o Brasil é a sexta potência mundial hoje, e ano
passado a ONU nos classificou em 84º lugar no índice de desenvolvimento humano.
Quais
foram as principais constatações da CPI?
O primeiro mérito dessa CPI é o
fato de ter sido resultado da luta social. Segundo, a CPI permitiu o acesso a
muitos documentos que nós brasileiros nunca tivemos acesso. As constatações
mais importantes foram essas, como o fato de 80% da origem da dívida não ter
sido explicada, mais de 90% da dívida ser com bancos privados internacionais,
que o FMI nunca foi nosso principal credor.
Que engodo foi o povo achar que
quando a dívida com o FMI foi paga, não havia mais dívida. A dívida com o FMI
sempre teve dois preços: o financeiro e o político. O preço financeiro sempre
foi muito baixinho. Quando o Lula pagou era 4% de juros ao ano. O FMI faz isso
porque o preço político é muito alto. Ele exige simplesmente acesso a todas as
informações que ele quiser, a tempo e a hora, e vincula essa ajuda econômica ao
direito de indicar como vai ser a política adotada pelo país, e monitorar tais
medidas. Então o que o Lula fez? Pagou a dívida financeira de 4%
antecipadamente – e diga-se de passagem, para pagar a dívida com o FMI foram
emitidos títulos da dívida interna, que na época pagavam juros de 19,3%. Então
não pagamos a dívida. Ela meramente mudou de mãos, deixamos de dever ao FMI
para dever aos detentores dos títulos da dívida interna.
Então financeiramente foi um
dano. E politicamente: no dia do pagamento ao FMI, o Palocci, que era ministro
da Fazenda, publicou na página do Ministério uma declaração formal. Uma carta
dizendo que o pagamento não significava a desvinculação ao inciso tal do
estatuto do FMI, ou seja, todo o direito do FMI de monitorar a economia, ter
acesso aos dados, etc., prevalecia.
A partir de 2005, o tesouro
nacional começou a resgatar antecipadamente títulos da dívida externa, e
pagando ágil. É inacreditável, pagar uma conta antes do vencimento e ao invés
de pedir desconto, paga ágil.
Por
que o tesouro nacional pagou antecipadamente?
Conseguimos aprovar
requerimento na CPI para perguntar por quê. O que explica isso é o fato da
dívida brasileira estar sendo regida pelo Benchmark. É uma marcação de mercado.
E um dos itens desse bendito Benchmark é a satisfação do investidor. Então, o
Brasil emitiu títulos da dívida externa em dólar, quando o dólar valia R$4.
Depois o dólar caiu para R$1,50. O investidor que comprou esses títulos ficou
frustrado. Então o Brasil resgatou com ágil, para manter a satisfação do
investidor. Tem condição? Isso foi uma das importantes descobertas da CPI.
Outra importante descoberta:
como são definidas as taxas de juros Selic. São definidas pelo Banco Central
não com base em fórmula matemática ou qualquer processo científico, mas com
base em reuniões realizadas com especialistas do mercado financeiro que vão lá
dizer a indicação do patamar em que as taxas de juros deveriam estar para não
significar um risco inflacionário. Um tremendo conflito de interesses, porque
quem se beneficia das taxas de juros? Por isso no início da crise que as taxas
começaram a subir loucamente, você pensa “Peraí. Em período de recessão, de
desaceleração, para que subir juros? Qual o risco de inflação? Não tem nenhuma
lógica”. E não tem nenhuma lógica mesmo, o mercado financeiro queria compensar
no tesouro perdas nas operações de risco que estavam fazendo. É inacreditável.
Em
relação à crise econômica mundial, você acha que existe chance de o Brasil
seguir o mesmo caminho dos países europeus que estão quebrando? Existe uma
sensação geral de que a crise não nos afetou, não nos afetará. O que você
espera para 2013?
A crise já está aqui. Está aqui
desde a década de 1980 e de certa forma, a gente vem se acostumando com todos
esses planos de ajuste, essas medidas de privilégio da dívida em detrimento ao
social, com todo esse desrespeito profundo ao cidadão que está financiando o
Estado sem o devido retorno.
Agora, esse último aspecto da
crise que estourou em 2008 nos Estados Unidos e se transferiu para a Europa,
tem fundamento principalmente na extrema financeirização mundial. O que é isso?
Os bancos passaram a criar papéis a partir da década de 1990. Simplesmente
criar os chamados derivativos, que são meras apostas. E passaram a
comercializar esses derivativos no mundo inteiro, não tem limite. Isso entrou
em colapso quando a ganância foi grande demais, a especulação do mercado
imobiliário norte-americano grande demais, houve uma interrupção nessa corrente
e caiu tudo, igual um dominó.
Por que o Brasil não foi
atingido no primeiríssimo momento por essa crise específica? Porque aqui no
Brasil as regras, inclusive do funcionamento do mercado financeiro, não
permitiam esse tipo de negociação. Além disso, no mercado financeiro mundial se
bancos do nível do Citibank, do Barclays, do Chase, do Bank of America, etc.,
estavam oferecendo derivativos, quem ia comprar derivativo dos bancos
brasileiros? Então os bancos brasileiros não estavam dependurados nessa onda
dos derivativos, que foi a causa da crise lá fora.
Por isso essa onda não nos
atingiu tanto no primeiro momento, mas atingiu. E atingiu inclusive empresas
brasileiras como a Sadia, a Aracruz, que tinham feito investimentos de alto
risco nesses derivativos e foram salvas pelo BNDES, o Luciano Coutinho confessa
isso no livro dele. Bilhões de reais foram repassados pelo BNDES a essas
empresas. Além dessas empresas que foram salvas, houve queda de arrecadação,
fuga de capitais e uma série de medidas com a desculpa da crise, inclusive
aquelas MPs que eu mencionei.
Bom, o que nos provoca
desespero? A partir daí, começaram a fazer modificações legais para permitir
que os bancos brasileiros atuem com derivativos e começamos a criar fundos
financeiros para absorver derivativos.
É
repetir o mesmo processo que aconteceu nos EUA?
Isso, é abrir os braços e pedir
“crise, venha para nós”. Isso aí provocou um impacto direto no oferecimento de
crédito, porque essas operações geram uma lucratividade tão grande – pensa bem,
é vender papel do nada – que com tantos recursos os bancos oferecem crédito.
Está todo mundo endividado, os próprios bancos estão empurrando crédito na
sociedade.
Eu não tenho dúvida de que pode
piorar muito. Mas acho que vão deixar para estourar depois da copa e dos jogos
olímpicos, para dizer que foi a dívida desses mega eventos. Mas já estamos em
recessão. Olha o crescimento do PIB. Com muito boa vontade chegou a 1%. O que
existe é muita propaganda. Como é que o país está muito bem? Com esse estado de
violência, com essa decadência na saúde pública, na educação? Está bem para
quem?
Fonte: Instituto
Humanitas Unisinos
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