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quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Aloizio Mercadante: um caso de “sucesso”


Professor Arandi Ginane Bezerra Jr., D. Sc.*
Li a interessante tese de doutorado do ministro Aloizio Mercadante Oliva. Este trabalho acadêmico cujo título é “As bases do novo desenvolvimentismo: análise do governo Lula” está disponível na Biblioteca Digital da Unicamp1. Inicialmente, o motivo que me levou à leitura foi uma curiosidade. Explico, sou físico de formação, também escrevi uma tese de doutorado e, assim como o ministro Mercadante, sou professor e funcionário público. As 537 páginas da tese do Dr. Mercadante chamaram minha atenção e fiquei curioso por saber do que se tratava. Ao final da leitura, acadêmico que sou, consultei o currículo Lattes do ministro 2. Queria saber quantos artigos ele havia publicado, porquanto uma tese tão robusta – imaginei – deveria conduzir a artigos interessantes. Confesso que fiquei decepcionado, porque o Dr. Mercadante não publicou nenhum artigo referente à tese. De fato, em seu currículo Lattes não consta a publicação de artigos em periódicos. Desconfiei.
A desconfiança se deve a meu apego a um princípio: teses de doutorado devem ser trabalhos inéditos e relevantes, logo (se são inéditos e relevantes), deveria ser possível publicá-las em revistas nas quais há o processo de revisão pelos pares. Mas, deixemos, por enquanto, para lá as tecnicalidades e comentemos as fotografias. Ao me deparar com a fotografia que o ministro colocou em seu currículo2, surpreendi-me com o contraste entre sua expressão “hoje” e aquela que havia se fixado em minha memória, referente ao “ontem”. Refiro-me a uma foto publicada na revista Veja3, em julho de 1984. Seguem, abaixo, as fotos:
Mercadante “ontem” 3 Mercadante “hoje” 2
Minha curiosidade se transformou em cisma: o sorriso de “hoje” está em total descompasso com a expressão grave de “ontem”. Por quê? Sei que, muitas vezes, precisamos dar tempo ao tempo para que o raciocínio coordene as ideias, as impressões e as sensações, por isso, decidi continuar a leitura da tese. Ao longo das horas, fui me deparando com ideias interessantes, expressas pelo doutor Mercadante em trechos que reproduzo aqui (incluindo a referência ao número da página):
“Evidentemente, a educação de qualidade exige, acima de tudo, professores bem pagos, formados e motivados, recursos pedagógicos adequados, instalações apropriadas...” (p.48).
“...a educação continua a ser um dos principais gargalos do desenvolvimento nacional” (p.255).
“Apesar dos avanços observados nas últimas décadas, a educação continua a ser reconhecidamente um dos mais graves problemas do país, um sério gargalo para o desenvolvimento sustentado e para a elevação dos padrões de vida e cidadania da população brasileira” (p.265).
“Apesar da reação contrária de alguns governadores, especialmente os da oposição, os salários na educação continuam baixos, sobretudo na educação básica, embora todos concordem que não haverá melhoria da educação com profissionais desvalorizados, mal pagos e mal preparados para o exercício do magistério” (p.271).
“O pressuposto é o de que os países que quiserem se destacar no longo prazo no cenário mundial terão de desenvolver sociedades com educação de qualidade e economias que tenham capacidade para gerar inovação científica e tecnológica. A simples eficiência na produção de commodities não assegurará, por si mesma, um lugar de destaque na globalização e na ordem mundial. Pelo menos não no longo prazo” (p.488).
“É claro que educação de qualidade pressupõe fundamentalmente professores qualificados e valorizados, escolas bem equipadas, envolvimento dos pais e das comunidades no ensino, etc” (p 492).
“Temos, é claro, ilhas de excelência, particularmente no ensino superior, mas a regra geral é a educação ainda precária e de qualidade inferior” (p.492).
Ao concluir a leitura da tese de doutorado, fui reler o texto que Mercadante, então professor da PUC-SP e vice-presidente da Associação Nacional dos Docentes de Ensino Superior, publicou na revista Veja, em 1984. Trata-se do artigo “A greve, o feijão e o sonho”3, do qual reproduzo as seguintes passagens, também muito interessantes:
“Abalado por inúmeros movimentos grevistas, o sistema educacional público brasileiro atravessa atualmente um momento crítico que raras vezes em sua história se manifestou de forma tão aguda... Antes de mais nada, a comunidade universitária engajou-se nesse processo de luta para reivindicar seu feijão e defender seu sonho”.
“Não tivemos outra alternativa a não ser desencadear uma greve. E, a se manterem as atuais posições do governo – a ministra da Educação encerrou as negociações, traindo compromissos anteriores assumidos com a ANDES – a greve atual continua e outras greves inevitavelmente ocorrerão”.
Li e reli as passagens. Voltei a prestar atenção nas fotos. O “processo interno”, mistura de pensamento com intuição, prosseguiu. Se as fotos são sobremaneira diferentes – o contraste entre sisudez preocupada em uma e sorriso esperto na outra – os discursos, por sua vez, são achegados: a tese do doutor Mercadante parece coerente com o artigo do professor e sindicalista Mercadante. Fico a pensar no tempo e nas transformações – não exatamente a partir dos referenciais da Física, ciência da minha formação, mas, talvez, da Filosofia. Na fotografia, há algo de morte; meu olhar, contudo, busca uma transcendência. Assim, que seguirei nesta bricolagem, pensamento solto e não linear.
Eis que fui ao Google e digitei as palavras que me vieram à cabeça em fluxo contínuo: Mercadante tese doutorado ministro sonho... Quase 500 mil páginas se ofereceram a mim. Sábado à tarde, enveredei-me a ler um pouco mais. Descobri muitas coisas.
Por exemplo, descobri que, quando candidato ao governo de São Paulo, em 2006, Mercadante declarou: “Eu construí a minha vida na educação... fiz meu mestrado e doutorado na Unicamp...”4. Opa! Alguma “dobra temporal” aqui. A tese de doutorado, ele defendeu em 17 de dezembro de 2012. Logo, em 2006, não era doutor e o então candidato Mercadante faltou com a verdade. Por quê? Minha curiosidade continua viva.
Salto para uma notícia da Folha de São Paulo (FSP), de 20105:
“O senador Aloizio Mercadante (PT-SP), candidato derrotado ao governo de São Paulo, foi convidado na tarde desta sexta-feira (3) pela presidente eleita, Dilma Rousseff, e vai assumir o Ministério de Ciência e Tecnologia no futuro governo... Assim, Mercadante é o primeiro dos candidatos do partido que não tiveram êxito nas urnas a ser ‘socorrido’ por Dilma. Em 2003, Lula assumiu seu primeiro mandato tendo no primeiro escalão vários derrotados nas urnas, como o baiano Jaques Wagner e o gaúcho Tarso Genro” (FSP, 03/12/2010).
O candidato Mercadante foi “socorrido” pela presidenta Dilma no mesmo mês em que defendeu sua tese de doutorado. No mês seguinte, o doutor Mercadante
assumiu o ministério da Ciência e Tecnologia, com um discurso também interessante6:
“O mundo da ciência e da tecnologia é estratégico para que possamos crescer com qualidade, gerando maior valor agregado aos nossos produtos e serviços, e em consequência, a competitividade global da economia, e acentuando o atual processo de inclusão social”.
Em trecho da matéria que consta no sítio da FINEP6, encontra-se outra informação que considero relevante para este processo de elaboração em que me encontro imerso:
“Recentemente, voltou à academia para defender sua tese de doutorado na Unicamp. ‘Costumava dizer que ‘estava’ senador, mas que era, na realidade, economista e professor. Agora, ‘estarei’ ministro, sendo com muita honra e acima de tudo, um educador e um economista”.
Os trechos “estarei ministro” e “sendo com muita honra e acima de tudo, um educador e um economista” reverberam em minha cabeça. Na sequência, entendi que o primeiro se referia, provavelmente, ao fato de que haveria uma troca de ministério (“estava” em um ministério, depois em outro “estaria”). Ora, em 24 de janeiro de 2012, Mercadante mudava de pasta, continuava ministro. O agora ministro da educação manteve seu discurso firme, talvez porque se considere “acima de tudo, economista e professor”7:
“Essa é a minha verdadeira identidade. Todos os cargos que ocupei, tudo o que fiz, fiz com base nessa profunda e definitiva identidade”.7
A identidade profunda, aprendemos com a psicologia, é algo que está sempre em outro lugar, definitivamente. Mas como encontrá-la? Como é que alguém, afinal, estabelece uma identidade? Nossa identidade se mistura com o mundo, o mundo se mistura com nossa identidade. Queria entender e parece que estou me complicando... O ministro, por sua vez, parece que se encontrou e que encontrou seu lugar. Talvez, por isso, o sorriso. Volto a me ater às fotos e percebo que naquelas das cerimônias de posse (de ambos os ministérios) há o mesmo sorriso que me havia chamado a atenção na foto do currículo Lattes. Será que encontrei o fio da meada?
Ora, pois, no discurso da nova posse8, o ministro me deu mais uma pista:
“Lá em casa respiramos educação e, no trabalho, já respiramos muito pó de giz.
Essa longa trajetória na pesquisa e no magistério me preparou para todos os desafios que enfrentei na minha vida pública.”
Seria, talvez, alguma alergia a pó de giz mais uma razão para o ar preocupado na foto de 1984? Ou será que a “longa trajetória na pesquisa” teria cansado o professor? A propósito, neste ponto, devo insistir que, de acordo com os critérios produtivistas de avaliação apregoados pelo ministro Mercadante, o professor Mercadante está em maus lençóis, isto porque nunca publicou um artigo, um artiguinho sequer em revista “indexada”. Seria por isso também a preocupação estampada na fotografia?
Mas deixemos este “papo Qualis” para lá e examinemos outra frase presente no desfecho do discurso de posse do ministro da Educação8:
“Não podemos esperar. O Brasil já se tornou a sexta economia mundial, tirando o lugar que pertencia ao Reino Unido. Porém, não melhoraremos de posição e não consolidaremos nosso desenvolvimento se não ousarmos, se não inovarmos, se não pensarmos grande, se não pensarmos o futuro a partir da educação.”
Neste ponto da minha reflexão, sou tentado a escrever que, tanto a tese de doutorado quanto os discursos de posse do ministro doutor Mercadante, constituem fonte fantástica de frases excelentes a serem usadas em discursos e em textos referentes à importância da educação, da pesquisa e da valorização do trabalho docente. Sinceramente, recomendo a leitura. Quem fizer copy-paste dos textos elaborados pelo ministro (por favor, não se esqueça de dar o devido crédito) vai ficar bem na fotografia, com perdão pelo trocadilho.
Mas pergunto: o que dá autoridade a um discurso? Onde a alma do discurso? Acredito que discurso não tem nem uma, nem outra. Alma é gente que tem. E alma é passível de qualificação. A propósito de alma e de discursos, é preciso registrar duas declarações mais recentes do ministro Mercadante. A primeira delas, emitida logo na sequência da deflagração da greve nacional dos professores federais, iniciada em 17 de maio, e a segunda, 90 dias após o início da greve:
“Não vejo porque uma greve neste momento, neste cenário em que o governo demonstra todo interesse em cumprir o acordo e há tempo
para negociar” (ministro Mercadante, declaração à imprensa9 em 23/05/2012).
"Não conheço nenhuma proposta melhor para os professores, tanto do setor público quanto do privado" (declaração à imprensa10 em 15/08/2012, sobre a proposta apresentada, em 13/08, pelo governo aos professores).
A curiosidade que me moveu no início, o contraste e o descompasso que percebi ao dirigir o olhar para as fotografias, ganham, assim, outra dimensão, porque esbarram no insulto. Insulto porque aquele Mercadante que escreveu o que escreveu e que disse o que disse, agora, diz – e faz! – outra coisa. Minhas memórias remetem à semelhança com quem pediu para esquecerem o que escreveu, senão, vejamos:
“Por isso, à frente do Ministério da Educação continuarei a luta da minha juventude pela dignidade dos professores. Esse é um compromisso de vida que assumo, agora, como compromisso público!” (Aloizio Mercadante, discurso de posse no MEC8).
“Compromisso de vida” é expressão impactante. Mas impacto maior foi aquele causado pelo simulacro de acordo, assinado em 3 de agosto, entre o governo federal e uma entidade que representa tão somente 3% da categoria dos professores. De fato, a maioria dos professores recusou a proposta apresentada pelo governo e este, arbitrariamente, encerrou as negociações. Isto faz eco com o texto de jornal escrito em 1984 pelo professor Mercadante, denunciando que “a ministra da Educação encerrou as negociações, traindo compromissos anteriores assumidos com a ANDES”. Neste sentido, salta aos olhos o excelente futurólogo que era Mercadante: “a greve atual continua e outras greves inevitavelmente ocorrerão”. Onde a “luta da juventude”, onde a “dignidade”? Ele disse, mesmo, “compromisso de vida”?
Talvez, o professor Mercadante, desanimado de ser professor, tenha percebido o quanto a vida de político seria melhor. E, talvez, o sorriso brote quando o ministro abre seu contracheque. Por exemplo, no mês de julho, segundo dados do Portal da Transparência11, seu salário líquido totalizou R$ 32.195,27. Motivo para sorrir.
Talvez, o sorriso também seja porque o ministro Mercadante esteja feliz por contribuir para o “Fomento à Pesquisa e ao Desenvolvimento de Conhecimentos Científicos”; informações do Portal da Transparência12 revelam que o ministro recebeu, em 2011, R$ 14.109,00 da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP); em 2012, sua atuação na área continua13, pelo que percebeu o total de R$ 5.479,48.
Além disso, segundo o mesmo portal14, o ministro também recebeu, entre fevereiro e abril de 2011, R$ 9.000,00 “para pagamento de indenização moradia”. Talvez, a vida de ministro seja um pouco melhor que a de professor. Seria por isso o sorriso?
Aqui das minhas bandas, sinceramente, não ando satisfeito com a remuneração que recebo (de professor federal em regime de dedicação exclusiva). Também não tem sido fácil conseguir verbas para exercer meu trabalho. Por exemplo, receber diárias (para a passagem e para o feijão), quando saio em viagens nacionais e internacionais, a fim de participar de congressos, é dureza. Para mim e para outros milhares de professores. Em outra nota, ainda segundo dados do Portal da Transparência15, para o ministro Mercadante, em 2011, houve a liberação de R$31.297,54 em diárias. É sabido que ministros viajam muito.
Estou quase escrevendo outra tese – e dizem que texto longo ninguém lê. Pois, declaro que li os do ministro (as 537 páginas da tese, o artigo de jornal e os discursos de posse). Aos que acompanharam este meu tecido, é hora de apresentar alguma espécie de desfecho, ou conclusão. É jogo duro a vida de acadêmico, mesmo quando tentamos nos libertar, certas categorias nos tomam de assalto. É assim com a estrutura dos textos. Por isso a demanda por concluir. Permitam-me, antes, afirmar que, mesmo em greve, mesmo sentindo na carne o desprezo e o desrespeito que o governo, vergonhosamente, insiste em propagar, ainda assim, o humor continua. O bom humor. Penso, elaboro, fico preocupado e sinto raiva, às vezes, franzo a testa. Mas o sorriso sempre vem ter aqui nesta face. Não é uma questão de “achismo”: sou, sim, diferente daquele professor que, quando chegou a hora de ser mais, perdeu-se.
Aí vai mais.
Li, reli, pensei, matutei, e fiquei com pena do professor Mercadante – aquele preocupado da foto de 1984. Acho que aquele professor, por conta da opressão e da injustiça, sofria. Aquele professor, que ainda não era doutor, também por isso, provavelmente, ficava preocupado. Aquele professor sonhava – e, sem medo – declarava o sonho, primo-irmão da esperança. Aquele professor, sem ter vergonha, escrevia “feijão”. Então, fiquei com pena daquele professor que, tornando-se político, parece que se desfez, ou fez-se duplo, e escreveu uma tese de letra morta. Escreveu muitas linhas bonitas, mas mortas.
Quanto ao ministro doutor, emito aqui minha opinião: sua tese, pensando bem, é pouco mais que uma propaganda de um governo (será que vai além disso?). As
passagens que destaquei e copiei são interessantes, mas, eis que fico em dúvida: será que ultrapassam o senso comum? Ah, e o ministro! Parece ser mais um “político” a corroborar a impressão que – de novo – o senso comum atribui ao termo. E, agora, parece que entendo as fotos. O ministro do futuro, “político de sucesso”, ri-se do “professor sem sucesso”: sem sucesso acadêmico e sem sucesso político. É o ministro que o homem se tornou que ressoa na própria alma. Sorri quem está contente. Sorri quem se encontrou. Acho que entendi. Pessoalmente, acho que não desejo sucesso ao ministro Mercadante. Ou melhor, acho que desejo outro tipo de sucesso. O fato é que sinto saudades do professor Mercadante, que mal conheci. O professor não teve sucesso (naquela foto, parece até que ele já sabia disso). Ouvi dizer que o ministro Mercadante, o da pose, vai ter que comer muito feijão para que os brasileiros voltem a acreditar quando ele falar de sonho.
Hoje, prefiro um ar preocupado, porque ressoa com o tempo em que vivo: enquanto o ministro sorri na outra fotografia, o(s) professor(es) carrega(m) o peso de uma greve. A partir de agora, acho que vou contrair uma mania: tirar mais fotos e olhar para elas a-ten-ta-men-te. A chateza desta coisa toda é que desconfiarei de mim quando estiver sorrindo.
Curitiba, 19 de agosto de 2012.

*Departamento Acadêmico de Física
Universidade Tecnológica Federal do Paraná
Em greve desde 17/05/2012.
Referências:
11http://www.portaldatransparencia.gov.br/servidores/Servidor-DetalhaRemuneracao.asp?Op=1&IdServidor=1699199&Ano=2012&Mes=6
Fonte: FocAia

2 comentários:

  1. Pensei que eu é que escrevia demais!!! Como escrever pouco quando há tanto a dizer?
    Entre duas fotos e dois sorrisos de mais um que poderia fazer diferente e não o fez, e por isso agora está feliz.

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  2. Falta do que fazer dá nisso.

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