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Ana Fani Alessandri Carlos
24/08/2012
Compreender as condições nas
quais se reproduz a sociedade brasileira, iluminar os conflitos e a condição
profundamente desigual desse processo, requer dos pesquisadores a disposição de
"habitar o tempo lento" imposto pela atividade do conhecimento. Esta
compreensão – como prova a história do
conhecimento – não é individual, pois pressupõe o debate de ideias entre pares,
fundado no respeito à diferença e nas possibilidades postas pela diferença de
vertentes e posições teórico- metodológicas que, antes de se conflitarem, se
enriquecem. Esse processo exige tempo e condições de trabalho, exige também
compromissos, e exige, ainda, disposição para o debate. O trabalho individual
de reflexão/análise se coloca como pressuposto da elaboração do conhecimento,
condição do debate.
Nesse sentido, se não há uma
verdade absoluta que se eleva no horizonte, tampouco existe somente um único
caminho possível para pensar/interpretar o mundo. Por outro lado, penso que
nosso papel na universidade é o de ensinar formando cidadãos, criando
condições, dando-lhes ferramentas para construir essa interpretação. Mas, sem
uma pesquisa que se debruce sobre a
realidade, sem uma reflexão profunda e sem fundamento, exigidos pelo árduo
trabalho de "gabinete", o que vamos ensinar-lhes?
Não sendo o único centro de
produção do conhecimento, a universidade é, no entanto, o lugar precípuo desta
possibilidade, que, para se realizar, precisa criar as condições necessárias
dessa atividade. Trata-se de abrir espaços onde, sem preconceitos, possa desabrochar
a diferença dos modos de pensar o mundo. A condição de independência e do
exercício da liberdade de pensar se apoia na realização desta virtualidade. Mas
o tempo da reflexão, cada vez mais consumido em papéis (hoje virtuais),
relatórios e pareceres, de todos os tipos, definha sem percebermos. Em todos os
lugares, a conversa aponta a "falta de tempo".
Não importa se nosso trabalho
analisa o mundo, desvenda suas contradições mais profundas; se com a produção
de um saber construímos os caminhos de um país independente. A universidade
espera resultados quantitativos, muitos artigos publicados – ninguém se
pergunta ou questiona seus conteúdos, se guardam alguma possibilidade fecunda
de conceber este mundo e nossa realidade desigual e dependente - muitas
participações/organizações de congressos, seminários, workshops - não importa
se com eles aprende-se algo, se depois de exporem seus trabalhos as pessoas se
dão ao, trabalho de permanecerem para o debate. E ainda poucos se preocupam com
os debates, posto que o centro das preocupações é o certificado de uma
"presença ilusória". Mas há mais. Solicitação de pareceres de todos
os tipos, salas apinhadas, reitores autoritários, falta de ambiente acadêmico.
Diante deste cenário e da
necessidade sempre ampliada do preenchimento do Lattes, o que fazer? Há muitas
estratégias. Posso correr de um colóquio a um workshop apresentando trabalhos
"quase iguais, etc. “Estou tão cheia de trabalho burocrático que ainda bem
que meus alunos escrevem artigos e colocam meu nome; senão não teria nada no
currículo". Foi o que ouvi, quase literalmente, de uma colega em uma de
minhas viagens.
Outro dia, ao abrir a internet
para ver o último lançamento de uma revista, constatei que uma porcentagem
considerável dos artigos estava assinada tanto pelo seu autor verdadeiro quanto
pelo seu orientador. Façamos uma conta, rápida: 10 orientandos escrevendo 2
artigos por ano somam 20 artigos no "currículo Lattes" de seu
orientador. Parece tentador!
"Se os outros programas de
pós-graduação fazem isso para aumentar a nota junto à CAPES, também
faço...", ouvi de outro colega, coordenador de um programa de
pós-graduação! Por uma nota melhor – em substituição ao reconhecimento e
importância da produção acadêmica realizada – cada programa de pós-graduação
torna-se não um parceiro de debate, mas, antes, um competidor. Mas até que
ponto a CAPES (que somos nós) privilegia e cobra esse comportamento destrutivo
dos professores? Onde e quando foi decidido pela comunidade geográfica que o
mestrado deve ser concluído em 18 meses? Que se deve publicar cada vez mais
(não importa com que conteúdo), que orientadores devem assinar, como coautores,
pesquisas orientadas, quando se sabe que existe até mesmo lei de direto autoral
indicando que orientador não é coautor (lei cuja existência de maneira alguma
substitui a ética)?
Será que a comunidade acadêmica
está contente com essa situação? Quando foi que perdemos nosso discernimento e
consciência sobre nosso papel de educadores, de formadores, de pensadores?
Um manifesto do GEU – Grupo de
Estudos Urbanos –, que apontava com mais profundidade e amplitude essa situação
durante o Simpósio de Geografia Urbana realizado em Brasília em setembro de
2009 caiu no vazio. Ainda outro dia recebi um e-mail de "corajosos professores
da Paraíba" que se desligaram de seus programas de pós em protesto contra
este estado de coisas. Decisão solitária, sem prováveis seguidores. Isso não
soa como um alerta?
Nossa associação estaria
preocupada com a situação dos programas de pós-graduação em Geografia e com as
condições em que se realiza o ensino e a pesquisa, no Brasil? Ou a avaliação é
de que "tudo vai bem"? Não seria o caso da ANPEGE abrir, em seu
calendário, um lugar de debate para revermos essas práticas produtivistas e anti-éticas?
Faz-se necessário que cada programa de pós-graduação veja no outro um parceiro
de debate, um cúmplice na produção do conhecimento sobre a realidade
brasileira.
Estou absolutamente convicta do
papel da Geografia na compreensão do mundo moderno, onde o espaço vem assumindo
um protagonismo inédito na compreensão da realidade de hoje. Mas isto exige
trabalho de pesquisa, reflexão, ambiente de debate.
Meu protesto solitário:
retiro-me da comissão científica de todas as revistas brasileiras das quais
participo e que aceitam artigos em coautoria orientador/orientando sobre
pesquisas orientadas, como procedimento correto e justificável.
Fonte: Geometropole
Sob a justificável alegação da falta de tempo não vemos mais debates de idéias confrontando pontos de vista diferentes, o que percebemos é que quando há "debates" procuramos frequentar e ou participar daqueles cujas idéias comungamos, quando os interlocutores não são da nossa turma simplesmente nos retiramos, como que querendo dizer "não vale a pena discutir, não me interesso com o que ele tem a dizer", essa prática está presente em todos os espaços, acadêmicos ou não. Além de não sermos mais senhores do nosso tempo também estamos nos tornando covardes intelectuais,logo agora, que descobrimos que a diversidade nos enriquece. É uma pena!
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