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terça-feira, 14 de agosto de 2012

É a educação, ministro!

Simbologia. Os protestos são, no fundo, uma demanda
 por diálogo público. Foto: Gustavo Moreno/D. A. Press
Por Muniz Sodré*


Greve de professor é mesmo greve? A quem se dispuser a refletir sobre a questão, é aconselhável pesquisar o pragmatismo americano, que atribui grande importância à terminologia como vetor de consolidação ou de mudança ideológica na vida social. Veja-se greve: no contexto semântico do neoliberalismo e na mentalidade seduzida pelo “capitalismo cognitivo”, registra-se uma tendência nada sutil para expurgar da História contemporânea essa palavra.
Primeiro, argumenta-se que, para determinadas atividades, como a educação, não “existe” greve porque a interrupção do trabalho não prejudicaria realmente o empregador. Segundo, no caso do operariado, a greve prejudica a produção, sim, mas seria um instrumento típico do regime fordista de trabalho, logo, anacrônico. A falácia desse tipo de argumentação está em supor a universalidade de categorias hipermodernas, como o “capital humano” (a criação de valor não pela força de trabalho externa ao trabalhador, e sim pelo seu saber vivo, dito “imaterial”), fruto do capitalismo cognitivo, supostamente emergente e virtuoso em todos os rincões do planeta.
Nada disso é falso, mas tudo isso, colocado apenas dessa maneira, esconde alguns fatos importantes. Por exemplo, o capital dito humano mantém a sociedade dependente da “velha” produção material e, não raro, em regimes historicamente regressivos. Outro: a flexibilidade do contrato de trabalho, um dos aspectos emergentes desse processo, contribui para que empresa e produção de riquezas deixem de ser mediadas pelas formas clássicas de trabalho.

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A greve é um mecanismo clássico de luta operária, porém, o seu sentido vem sendo reposto na História pelos movimentos sociais em prol não apenas dos direitos trabalhistas, mas também dos direitos civis e dos direitos sociais (educação, saúde). A própria legislação (Consolidação das Leis do Trabalho) reconhece que a palavra greve refere-se, por extensão, à interrupção coletiva e voluntária de qualquer atividade, remunerada ou não, para protestar contra algo. Nada impede que se faça greve até mesmo pelo direito de trabalhar, quando essa atividade estiver ameaçada em sua dignidade ou na possibilidade de sua continuação.
A greve atual dos professores das universidades federais, com quase três meses de duração, insere-se nesse quadro amplo, de muitos aspectos. Comecemos pelo aspecto macroeconômico. Um estudo da Fundação Getulio Vargas mostra que um dos fatores para a atual ascensão da baixa classe média foi a universalização do ensino fundamental a partir dos anos 1990. Estima-se que a continuidade da mobilidade social dependerá do cumprimento das metas de educação.
O problema é que a educação comparece no discurso oficial como uma reles peça orçamentária, mensurável apenas por estatísticas de matrículas, avaliações e recursos. Deixa-se de lado o essencial em todo e qualquer processo educacional, ou seja, o professor e seus históricos fronts republicanos – cultura, pedagogia e democracia. Sem a formulação de projetos político-pedagógicos em níveis nacionais, vê-se prosperar uma subcultura avaliativa, decorrência lógica da presença de tecnoburocratas, em vez de pedagogos e pensadores, na esfera clássica da educação.
É essa subcultura, aliás, que alimenta as organizações internacionais (OCDE, Banco Mundial, Comissão Europeia) empenhadas na constituição de um mercado mundial da educação. Ainda assim, o discurso globalista consegue estar à frente da parolagem governamental, onde a palavra educação circula como um fetiche economicista. Mesmo apoiado no limitado escopo empresarial do capital humano, o discurso globalista não abre mão da valorização do professor.
A valorização republicana do professor dá-se pelo reconhecimento público de sua estabilidade institucional no quadro do Estado. Este é o ponto central do movimento grevista em curso: um novo plano de carreira e um salário sem os “penduricalhos” instáveis, obtidos ao longo de anos de lutas. O reajuste salarial está atrelado a esse plano, sintomaticamente rejeitado pelo atual governo: “A reestruturação das carreiras já ocorreu no governo Lula e agora mudou a política, numa situação agravada pela crise”.
Mas que mudança política? Que crise? Que agravamento? Estas palavras não aparecem nos discursos oficiais sobre os preparativos para a Copa do Mundo ou para as Olimpíadas. Num país que dispõe (neste mês de agosto) de 376 bilhões de dólares em reservas, paga em dia a dívida externa e é credor do Fundo Monetário Internacional, não se podem invocar os álibis da crise mundial e seu agravamento, mesmo com a redução do PIB.
Não se trata realmente de falta de fundos, mas de falta do bom-senso necessário a uma mudança de mentalidade em favor da ampliação das políticas sociais, com vistas à transformação da educação e da saúde públicas. O cuidado é outro, como reverbera o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho: “Temos de nos preocupar muito com o emprego daqueles que não têm estabilidade. Então, toda a nossa sobra fiscal estamos procurando empregar para estimular a indústria, a agricultura, o comércio e os serviços, porque esses nos preocupam mais”.
Em outras palavras, a iniciativa privada gera riqueza, logo, paga impostos que arcam com o custo das políticas sociais. Isto é o que a retórica chama de “paralogismo da indução defeituosa”, e nós chamamos de pérola da simplificação neoliberal. Defeito: o porta-voz deixa de dizer que, quando uma empresa qualquer contrata um profissional qualificado, está incorporando um “ativo” que custou anos de “ativos” familiares ou estatais para a sua formação. Onde o neoliberal diz “custo” leia-se “investimento em infraestrutura”. A terminologia proativa explica: “É a educação, Carvalho!”
“Mas temos todo o respeito pelos servidores”, ressalvou o ministro. Por que então não dialogar com todos os seus órgãos de classe? Respeitar é não discriminar. O plano de carreira, por exemplo, é matéria controvertida entre os próprios professores: tem laivos corporativistas, passa ao largo do problema da padronização salarial que impede a contratação de cérebros estrangeiros. Greve é hoje demanda de diálogo público. Mas no vazio da representatividade inexiste diálogo, já que voz nenhuma se reproduz no vácuo.
Por tudo isso, no momento em que o fantasma do neoliberal Milton Friedman reaparece nos jornais, é admissível pensar que esta greve dos professores universitários tem algo de pedagógico numa sociedade de fraca participação coletiva, mobilizada apenas pela novela das 8: uma aula pública de indignação diante da hipocrisia oficial para com a educação e um apelo à mobilização da sociedade como um todo.
*Professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e escritor.

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