UMA ANÁLISE DAS MANIFESTAÇÕES POPULARES NO BRASIL ATUAL
Nildo Viana*
20/06/2013
Ocupação é o ato de ocupar,
tomar conta de um território ou lugar. Esse é o processo que vem ocorrendo na
sociedade brasileira atual. A ocupação das ruas através das manifestações foi
um processo que acabou se espalhando e generalizando. Jovens, principalmente
estudantes secundaristas e universitários, ocuparam as ruas das cidades para
realizar protestos. Em Porto Alegre e Goiânia ocorreram as primeiras ocupações
através de manifestações contra o aumento da passagem. Em várias manifestações
isto se repetiu e a violência estatal através da polícia no dia 28 de maio em
Goiânia, bem como no dia 13 de junho em São Paulo, incentivou um processo de
adesão popular crescente ao movimento que ganhou força e espaço em todas as
discussões, meios de comunicação e nas próprias ruas. Houve uma crescente
ocupação das ruas pela população. A questão do preço da passagem de ônibus foi
o estopim, mas novas questões surgiram e se desenvolveram. Agora há a
perspectiva de ocupar não apenas as ruas, mas também a sociedade como um todo,
a vida em sua totalidade. Esse é o tema que abordaremos agora.
As
razões da ocupação das ruas
A ocupação das ruas só ocorreu
devido ao fato das ruas não pertencerem à população. A onda de protestos que
ocorre na sociedade brasileira é derivada da grande insatisfação com o
transporte coletivo (preço da passagem, qualidade do atendimento, etc.) e
diversas outras questões sociais. As primeiras manifestações focalizam mais a
questão do transporte coletivo, que deveria ser estatal, mas é pertencente à iniciativa
privada que visa o lucro e não a satisfação das necessidades dos usuários. O
capital transportador, um setor do capital que lucra com a exploração do
transporte coletivo, obtém lucros que expressam a transferência de renda da
população para os seus cofres. Contudo, essa é uma questão que gera
insatisfação na vida cotidiana dos indivíduos, e para as classes
desprivilegiadas (proletariado, lumpemproletariado, trabalhadores em geral) o
preço da passagem pesa no seu bolso e o aumento gera um descontentamento por
isso e ainda ser no contexto de um péssimo serviço prestado (superlotação é
apenas o exemplo mais visível desse processo). No entanto, a população está
insatisfeita com milhares de outras coisas. No fundo, numa sociedade fundada na
exploração e dominação, no trabalho alienado, num processo de constante
competição, burocratização e mercantilização de tudo, na qual a vida é
alienada, então não falta motivo para insatisfação. Contudo, a força da
hegemonia cultural da classe dominante, os meios oligopolistas de comunicação,
o papel do Estado, o apoio de outras classes sociais privilegiadas (burocracia,
intelectualidade, etc.), a repressão policial, e diversos outros elementos
constitutivos da atual sociedade, incluindo os escapismos (televisão, internet,
drogas, calmantes, consumismo, etc.) ela não se manifestava. E por qual motivo
se manifestou agora?
O motivo principal por ter
ocorrido foi o processo que essa sociedade que gera milhares de formas de
insatisfação ainda vem piorando as condições de vida das pessoas, ampliando
assim a quantidade e intensidade das insatisfações. A emergência do regime de
acumulação integral (VIANA, 2009; VIANA, 2003), caracterizado pela constituição
do toyotismo e reestruturação produtiva, neoliberalismo e neoimperialismo (“globalização”),
promoveu um aumento generalizado da exploração, da pobreza, do desemprego,
inclusive nos países imperialistas. Nesse contexto, a estabilidade política
nestes países foi suplantada e as revoltas e manifestações passaram a aumentar,
bem como nos países já caracterizados por uma alta exploração, e as lutas
sociais no México e Argentina apontam para isso. Esse processo tende se ampliar
e o caso brasileiro é apenas um sintoma disse, pois tal regime de acumulação, a
partir de 1999, começou a dar os seus primeiros sinais de esgotamento. Foi,
inclusive, nesse contexto, que emergiram várias lutas (nos casos já citados do
México e Argentina, mas também as revoltas na França em 2005 e outras
manifestações pelo mundo que foram se tornando cada vez mais cotidiano) e o
movimento denominado “antiglobalização” foi uma das consequências desse
processo. O período do pensamento único e da hegemonia neoliberal quase
absoluta é superado e em seu lugar se retoma concepções revolucionárias
(anarquismo, conselhismo, situacionismo) e críticas, e as lutas e manifestações
se ampliam, com avanços e recuos, fazendo parte da cotidianidade do capitalismo
contemporâneo dominado pelo regime de acumulação integral. O “fim da história”
propagandeado por Fukuyama (1992) foi recusado nas ruas e nas mentes de muitos
indivíduos, e a hegemonia absoluta do neoliberalismo foi suplantado e apenas
uma hegemonia relativa passou a existir.
Mas a sociedade brasileira
parecia estar vivendo em um “mar de rosas”. Um governo de um partido denominado
“dos trabalhadores”, com uma presidenta com popularidade de 73%, aparecendo
como uma grande economia, a sexta no mundo, entre outros elementos que
reforçavam a imagem de um país com estabilidade. Isso, no entanto, não aboliu o
conjunto das insatisfações existentes e nem teve grandes efeitos na vida
cotidiana dos indivíduos, principalmente os das classes exploradas. As
condições de vida são extremamente precárias, o processo de exploração se
intensificou, os níveis de desemprego são elevados, a precarização do trabalho
se ampliou, bem como os serviços de saúde, educação, entre outros, também
pioraram, graças às políticas neoliberais dos sucessivos governos até chegar ao
atual. E as políticas neoliberais são excessivamente repressivas e voltadas
para conter as revoltas, manifestações, movimentos sociais, etc. Como já dizia
Bobbio, o Estado neoliberal é mínimo (em gastos estatais e políticas sociais) e
forte (em repressão). Por isso produziu a política de tolerância zero e foi
chamado pelo sociólogo francês, Löic Wacquant (2001) de “Estado penal”.
Porém, isso não ocorreu agora.
A situação já está assim há muito tempo. Contudo, o regime de acumulação
integral vai se esgotando, bem como desenvolvendo e ampliando seus problemas de
reprodução. A crise financeira de 2008 veio reforçar tal esgotamento e os
efeitos no Brasil demoraram um pouco mais e apareceu com um impacto menor. Mas
as coisas começaram paulatinamente a piorar, desde o chamado “crescimento
econômico” que começou a decair, a inflação que vai aumentando paulatinamente,
convivendo com a desilusão de amplos setores da sociedade com o governo
supostamente socialdemocrata que no fundo é neoliberal, bem como o
descontentamento geral da população com os partidos e governos, bem como o
sistema eleitoral (basta ver os índices crescentes de voto nulo, branco e
abstenções). As lutas político-partidárias perderam o sentido e a corrupção
geral, que atinge todos os partidos, provocam uma recusa crescente da
democracia burguesa, chamada também de “representativa”, fundada nas
burocracias partidárias e no sistema eleitoral. Assim, dentre os setores mais
desiludidos e contestadores se encontra a juventude.
A precarização das
universidades vem crescendo paulatinamente e a greve que atingiu quase todas as
instituições federais de ensino, devido a isso e nova investida do governo que
precarizava ainda mais o que já era precário, foi outro sintoma. As greves
conseguiram poucos resultados e a insatisfação nos meios estudantis nessas
instituições era visível. O mesmo ocorreu nos institutos federais de educação e
tecnologia, as antigas escolas técnicas, bem como no ensino público em geral. E
novas investidas do governo Dilma, inclusive a ofensiva contra disciplinas como
história, sociologia e filosofia, o que recorda o regime militar, é apenas mais
um detalhe e motivo para insatisfação.
Nesse contexto todo, as novas
ações das empresas capitalistas e do governo aumentam mais ainda o
descontentamento popular e da juventude em especial. O aumento dos preços das
passagens, no bojo do descontentamento já existente, inclusive com a
reivindicação a muito tempo de passe livre para os estudantes, foi apenas a
“gota d’agua”, o copo encheu e transbordou. Os jovens, principalmente
secundaristas e universitários, mas aglutinando outros setores da sociedade,
protestaram, manifestaram. Não obtiveram grandes êxitos e a resposta dos
governos foi, novamente, a repressão, inclusive com violência excessiva e
truculência. Além disso, tal como se pôde observar nas afirmações de Fernando
Haddad, prefeito de São Paulo e que escreve livros sobre “socialismo”, o
governo não iria ceder. A política de endurecimento, não negociação e
repressão, se apresentou como semelhante ao caso de alguns países europeus com
suas políticas de austeridade e repressão. A repressão violenta contra as
manifestações provocou o seu fortalecimento e o apoio popular crescente e novas
reinvindicações foram realizadas e nesse processo todo novos setores
engrossaram as fileiras do movimento e o conjunto das insatisfações começou a se
delinear em diversas manifestações. As ruas foram ocupadas.
As
ruas ocupadas e as vidas roubadas
Uma vez desencadeado o
movimento de ocupação das ruas pelas manifestações estudantis e que
posteriormente se tornou da população como um todo, ampliando as reivindicações
e o pensamento crítico na sociedade, a estratégia governista foi alterada, bem
como a posição de alguns dos meios oligopolistas de comunicação. A estratégia
governista era a repressão e criminalização dos protestos e a imprensa em sua
maioria acusava os manifestantes de vandalismo. Com o processo de ampliação da
ocupação das ruas, o apoio popular crescente e novos setores entrando na luta,
a estratégia governista mudou e o discurso da grande imprensa também. Uma nova
“interpretação” passou a circular na imprensa e a criminalização das
manifestações passou a ser substituída pelo apoio. Claro que os governos
passaram a evitar o uso desmedido da repressão e o aumento do contingente de
pessoas participando das manifestações fez com que se buscasse influenciar os
rumos do movimento, dando-lhe novo caráter. A estratégia passou a ser: defender
o direito e legitimidade das manifestações, desde que pacíficas e controladas
pelo Estado. No entanto, como isso não convence aqueles que já estavam
engajados nessa luta e certos setores da sociedade, então se buscou produzir
uma diferenciação no movimento, colocando que alguns produzem atos de
vandalismo e esses podem e devem ser reprimidos. Da repressão generalizada
passou-se para a repressão localizada.
A questão é que o discurso dos
meios oligopolistas de comunicação também foi mudando e se encaixando nessa
nova estratégia. A ideia era a de que já que não era possível evitar as
manifestações, cujo estopim foi o movimento inicial e mais politizado, então
era influenciar esse movimento, principalmente no caso da parte da população
que aderiu a posteriori às manifestações, no sentido de lhe dar a direção.
Nesse mesmo momento os partidos políticos começaram a tentar realizar o mesmo
movimento de influência, buscando apoiar, mas dando-lhe outro sentido, querendo
canalizar as manifestações para seus interesses político-partidários. Os
partidos assumidamente de direita passaram a usar os protestos para acusar os
governos de outros partidos e a nível geral, os partidos fora do governo
federal passaram a focalizar a questão do Governo Dilma. Os pequenos partidos
que se dizem de esquerda, mas cujas práticas em pouco difere dos demais, por
sua vez, apareceram oportunisticamente nas manifestações com suas bandeiras, o
que lhe valeram vaias e contestações.
Assim, o que os partidos,
imprensa, governo, etc., buscaram fazer, foi, ao invés de reprimir e condenar
as manifestações, apoiar e tentar dirigir as mesmas, buscando transformá-las em
luta de partidos ao invés de luta de classes. E isso a suposta “esquerda”
apoiou e como sempre contribuiu para desvirtuar o movimento. A transformação da
luta de classes em luta de partidos acaba provocando algo diferente do momento
inicial das manifestações, quando eram predominantemente estudantis, que é a
luta pela hegemonia. A intenção da classe dominante e dos governos é
redirecionar o movimento e a existência de inúmeras reivindicações acaba
facilitando esse processo. A questão da corrupção, que é uma questão de
governos e partidos, passa a aparecer com certa evidência. Sem dúvida, existe a
corrupção e é um problema que deve ser trabalhado e combatido. Mas é necessário
entender que a corrupção é um fenômeno generalizado que atinge todos os
partidos e governos. O problema é canalizar a questão para a corrupção de um
governo específico, esquecendo a corrupção do outro governo (não somente os
anteriores, mas, por exemplo, abordar a corrupção no governo estadual
esquecendo da existente no governo federal, a do partido X e não a do partido
Y).
Por isso, o movimento corre o
risco de ser reorientando numa direção moderada e que nada resolve na vida da
população. Isso será resultado da luta que está sendo travada hoje em diversos
momentos e lugares. Se isso ocorrer, vai significar uma derrota. E será uma
derrota tão grande que além de terem roubado as vidas das pessoas, o que
incentiva a população protestar e contestar, agora roubam até a sua
contestação. É isso que aqueles que detém o poder estão querendo: roubar,
dirigir, desvirtuar a contestação. Para a população, é necessário retomar o
controle da sua contestação e não fazer o jogo da classe dominante. As vidas
foram roubadas e agora querem roubar o que restou numa sociedade burocratizada,
mercantilizada e competitiva que massacra os indivíduos cotidianamente e que os
remédios, os calmantes, ajudam a manter intacta. Contudo, isso gera mais
insatisfação, mais possibilidade de contestação e talvez, o que é uma das
possibilidades, vá gerar a luta para retomar a vida em sua totalidade, com a
população buscando se reapropriar do que lhe foi expropriado.
Uma
ocupação da vida?
A vida dos indivíduos, da
população em geral, foi roubada. O trabalho alienado, o consumo alienado, o
lazer alienado, a vida alienada. A vida da população é dirigida, controlada,
por outros. A vida não pertence aos indivíduos. Restou para os indivíduos a
luta contra essa sociedade que lhe retira tudo e transforma em mero componente
de uma grande engrenagem burocrática voltada para a acumulação de capital que
beneficia apenas uma minoria, a classe dominante e suas classes auxiliares. A
luta é um dos poucos espaços de liberdade, apesar de ser ela mesmo um campo de
luta e que os partidos supostamente de “esquerda” buscam se apropriar. A
explosão de manifestações e protestos na sociedade brasileira é expressão desse
desejo de liberdade e uma primeira forma de sua concretização. As pessoas
vibrando nas ruas por ter um pequeno ato de liberdade, uma euforia contagiante,
uma efervescência que acompanha todos os processos revolucionários (Decouflé,
1970).
Contudo, o que os governantes e
a grande imprensa buscam fazer é tentar se apropriar dessas manifestações,
dirigi-las, o que significa abolir a liberdade existente na luta. Ao controlar
a luta, ela perde o seu sentido. Mas é preciso controla-la, da perspectiva do
poder, da classe dominante. Isso por dois motivos básicos: a sua força e
reivindicações são um perigo para quem detém o poder (e a propriedade privada),
já que os governantes não querem atender as reivindicações, pois isso afetaria
o lucro das empresas capitalistas e teriam efeitos eleitorais, entre outros,
bem negativos para os mesmos e o outro motivo, mais profundo e que é um grande
temor da classe dominante, o gosto da liberdade pode gerar a reinvindicação de
uma liberdade total, a transformação da vida em sua totalidade. Isso
significaria, o que é proposta de muitos setores atuantes nas manifestações, a
dispensa dos governos e a reapropriação da vida como um todo.
A luta no interior da luta é
uma preparação e uma antecipação de uma vida autêntica, fundada na liberdade e
na igualdade. As pessoas que se sentiram mais realizadas e livres nas ruas
podem querer que isso se torne o seu cotidiano, a sua vida não em um momento
delimitado, mas em todos os momentos, não apenas nas ruas, mas no seu local de
trabalho, estudo, moradia. É preciso dar o passo seguinte e ocupar não somente
as ruas, mas a vida. Ocupar a vida é tomar conta dela e viver de uma forma que
não seja fundada na exploração de classe, na dominação, na opressão, e que ao
invés de ser mero meio para a aquisição de lucro para outros, ela seja uma
forma de satisfação das necessidades humanas e realização das potencialidades
dos indivíduos. Nesse sentido, a ocupação das ruas ganha um novo significado:
antecipação e preparação para a ocupação da vida. A abolição de uma sociedade
desumana e a constituição de uma nova sociedade, humanizada. A passagem de uma
sociedade que existe para reproduzir o capital para uma sociedade cujo objetivo
é reproduzir a vida humana. Isso significa que o temor da classe dominante está
ligado a um processo real, que pode ou não se realizar, que vai ser o resultado
de várias lutas, inclusive a luta pela hegemonia no seu interior. A autogestão
social é um desejo humano, mesmo que sem utilizar determinadas palavras ou ter
uma concepção mais claro que isso seja, e uma possibilidade, uma tendência e
por isso devemos reforçá-la para contribuir com sua concretização.
O importante é que essa
possibilidade existe, como sempre existiu, mas em determinados momentos se torna
mais provável do que em outros. E, no fundo, o que decide isso é a população,
são os indivíduos e suas ações, inclusive superando seus medos e compromissos
com a sociedade existente, que provocam o seu massacre cotidiano. Então é hora
de ocupar as ruas e lutar por isso e assim contribuir com a ocupação da vida.
Referências
DECOUFLÉ, André. Sociologia das
Revoluções. São Paulo: Difel, 1970.
FUKUYAMA, Francis. O Fim da
História e o Último Homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
VIANA, Nildo. Estado, Democracia
e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. Rio de
Janeiro, Achiamé, 2003.
VIANA, Nildo. O Capitalismo na
Era da Acumulação Integral. São Paulo, Idéias e Letras, 2009.
WACQUANT, Löic. As Prisões da
Miséria. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001.
*Professor da Faculdade de
Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás
Doutor em Sociologia pela
Universidade de Brasília.
E-mail: nildo@nildoviana.com
Fonte: Caderno Territorial
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