Plínio
de A. Sampaio Jr.*
As manifestações convocadas pelo Movimento
do Passe Livre pela redução das passagens de ônibus politizaram a discussão
sobre o orçamento público. Ao questionar a crônica penúria de recursos para as
políticas sociais, a juventude brasileira exige transparência nas contas
públicas e novos critérios na utilização do dinheiro do povo. O tufão que
revitaliza a luta de classes provocou uma desnaturalização da economia,
colocando em evidência o componente ideológico que oculta os interesses por
trás da linguagem técnica, hermética e supostamente neutra da racionalidade
econômica.
Apesar da contundência das manifestações,
as maiores e mais virulentas da história recente do Brasil, os partidos há
décadas encastelados no poder – PT, PSDB, PMDB, PSB, DEM – parecem não ter
entendido a mensagem das ruas. Aturdidos pela dimensão avassaladora da revolta
popular que toma conta do Brasil, muito a contragosto, prefeitos e governadores
cederam à demanda por cortes nas tarifas de transporte público. Mas teimam em
manter as premissas antisociais que regem a política fiscal, que se
materializam nos princípios ultra-regressivos da Lei de Responsabilidade
Fiscal, cuja essência consiste em canonizar os interesses dos credores da
dívida pública, transformando o gasto social e os investimentos públicos em
variáveis de ajuste das contas públicas.
O caso do prefeito da cidade de São Paulo,
supostamente um expoente da ala mais à esquerda do PT, é simbólico da incapacidade
de as autoridades estabelecidas colocar em xeque os parâmetros que regem a
política fiscal sob o jugo do neoliberalismo.
Quando a disposição de luta da população
ainda não se tinha manifestado plenamente, a reação de Fernando Haddad foi de
total menosprezo pelo pleito do MPL, negando peremptoriamente qualquer
possibilidade de diálogo e afirmando a absoluta impossibilidade de alterar a
tarifa de ônibus (R$ 3,20 era uma cifra inquestionável, um problema
matemático). Premido pela força dos fatos, em poucos dias o prefeito foi
obrigado a abrir diálogo com os manifestantes.
No entanto, no encontro com representantes
do MPL, o prefeito reiterou seus argumentos sobre a absoluta impossibilidade
técnica de alterar a tarifa. Lançando mão de subterfúgios e sofismas, Haddad,
com a autoridade do poder, reforçada por sua origem acadêmica, provou por a + b
que não haveria a menor possibilidade de abaixar a tarifa – R$ 3,20 era um
limite intransponível. Tratava-se de um problema matemático. No Conselho da Cidade,
o prefeito foi peremptório: “A coisa mais fácil do mundo é agradar no curto
prazo, tomar uma decisão populista sem explicar para a sociedade as
implicações”. Para defender seu ponto de vista, lançou da impostura.
Manipulando as informações que deveriam ser públicas e transparentes, explicou
por que não poderia reduzir as tarifas: “Nossas estimativas dão conta que o
custo anual até 2016 daria para contratar 20 mil médicos, dobrar a rede
hospitalar, construir 20 mil unidades habitacionais”. A mensagem era clara: “Se
tivermos que ampliar os subsídios com recursos municipais, que a sociedade
participe da decisão porque teremos que tirar dinheiro de investimentos em
outras áreas, como saúde e educação”.
O esforço para dividir o movimento, jogando
a população contra os jovens que lutavam contra o aumento das tarifas, não deu
resultado. Horas mais tarde, o mesmo discurso apareceria na boca do governador
Geraldo Alkmin, quando ambos, lado a lado, constrangidos, anunciaram,
finalmente, que o impossível tinha acontecido. O aumento estava revogado.
Contudo, ao insistir que os recursos para
financiar a redução das tarifas seriam retirados de outras áreas sociais, a
essência do pleito dos manifestantes – inverter o critério de prioridade
cristalizado na Lei de Responsabilidade Fiscal e liberar a política fiscal dos
imperativos dos grupos parasitários que controlam o orçamento público –
continuou olimpicamente ignorado. Na patética tergiversação do prefeito e do
governador, existe um componente de coerência: a cumplicidade incondicional com
o status quo liberal. Ambos
recusam-se a discutir as premissas que condicionam a política fiscal. São
honestos, contudo, quando reconhecem cinicamente que, nos parâmetros da ordem, seus
governos não têm a menor possibilidade de oferecer serviços públicos dignos.
Não entenderam o brado das ruas. A
população não foi às ruas apenas por 0,20 centavos. Ela luta por uma mudança
nos supostos da política fiscal. Na substância da descrença geral sobre a
capacidade do Estado de resolver os problemas essenciais da população, existe
uma total rejeição aos poderes instituídos. Se o recado tivesse sido entendido,
os governantes não teriam trapaceado com dados e ocultado informações que
revelam os grandes interesses econômicos escondidos na caixa preta do orçamento
público.
A apresentação fragmentada e incompleta das
contas da prefeitura manipula a realidade. Contrapor como necessidade
inexorável diminuir os investimentos públicos como forma de financiamento dos
transportes públicos é uma trapaça. Se houvesse vontade e coragem política para
enfrentar os interesses econômicos e sociais que governam a cidade, não seria
difícil constatar que São Paulo – uma cidade rica – não está condenada a tratar
seus cidadãos como escravos modernos. A histeria tecnocrata de Haddad
simplesmente não se justifica.
O custo anual para a prefeitura da redução
de R$ 0,20 nas tarifas de ônibus, calculado em R$ 385 milhões, não representa
um montante tão extraordinário como Haddad procurou mostrar. Corresponde a
menos de 1% da receita total do município; apenas 2,2% da receita tributária da
cidade; e pouco mais de 7,2% do IPTU. Enfim, nada que não pudesse ser obtido
com uma reforma que aumentasse o IPTU dos bancos, indústrias, shoppings e
mansões da cidade de São Paulo.
Comparado com o gasto previsto neste ano com
o serviço da dívida pública refinanciada com o governo federal em 2000 no
governo FHC, por imposição do FMI – R$ 3,5 bilhões -, R$ 385 milhões é um
montante irrisório. Uma redução de 0,7 pontos percentuais nos custos de agiota imposto
pela União (juros de 9% ao ano + IGP) ao povo paulistano seria suficiente para
cobri-lo e ainda assim superaria por larga margem qualquer aplicação do mercado
financeiro. Mas Haddad omitiu de sua didática exposição o problema da dívida pública
da cidade de São Paulo. Assim, deixou de revelar à população que, entre o ano
2000 e junho de 2013, o serviço da dívida já consumiu R$ 20,9 bilhões. Também
omitiu que, apesar de todo esse custo, o estoque da dívida pública com o
governo federal aumentou nesse período de R$ 11.3 para U$ 58 bilhões. O juro extorsivo
cobrado pelo governo federal estabelece uma dinâmica financeira de expansão da
dívida que asfixia o município.
Mesmo tendo plena consciência do fato, pois
o assunto foi tema importante de sua campanha, o prefeito ocultou o mecanismo
de transferência de recursos dos cidadãos paulistanos para o governo federal a
fim de engordar os superávits primários exigidos pelo FMI. Assim, Haddad deixou
na penumbra a armadilha financeira que solapa a capacidade da cidade de São
Paulo fazer políticas públicas. Como o prefeito gosta de combater o movimento
social com terrorismo contábil, revelando os médicos, leitos hospitalares e
casas populares que seriam comprometidas pela redução das tarifas, não custa contrapor
o custo dos quase 13 anos de vigência do acordo firmado por FHC e mantido pelos
governos de Lula e Dilma. Eis o que se perdeu com a sangria
imposta pela dívida pública com o governo federal: 83,6 quilômetros de linhas
de metrô (U$ 250 milhões o quilômetro); 418 mil casas populares (R$ 50 mil a
unidade); 17.416 creches (R$ 1,2 milhão cada).
Tão zeloso em “abrir” as contas públicas,
Fernando Haddad foi absolutamente omisso em relação a caixa preta que explica os
custos e lucros que estão por trás do cálculo da tarifa de transporte público,
mesmo o assunto tendo sido um reclamo da promotoria pública. Em nenhum momento
aventou sequer a possibilidade de mexer na margem de lucro das empresas e,
muito menos, em estatizar o transporte coletivo da cidade, eliminando um dos
principais parasitas que sugam os cofres públicos. E, no entanto, o povo que
saiu às ruas para se apropriar da cidade grita em alto e bom som que a livre
circulação das pessoas não pode ser objeto de lucro e ganância.
Nas últimas semanas, a juventude que
atendeu o apelo do MPL conseguiu duas grandes vitórias. Primeiro, disse um
rotundo NÃO à criminalização das lutas sociais, reafirmando o direito
constitucional do cidadão à livre manifestação política. Segundo, o povo na rua
derrubou a tarifa de ônibus. São as primeiras batalhas de um longo combate para
subordinar a economia brasileira às necessidades do povo trabalhador. Foram
batalhas históricas que colocaram na agenda a urgência de uma mudança radical
em toda a política nacional.
Não há nada de surpreendente na revolta que
se alastra por todos os cantos do Brasil. O surpreendente é que as terríveis
contradições de uma sociedade em processo de reversão neocolonial tenham
demorado tanto para vir à tona. A luta por uma inversão nas prioridades da
política pública expõe a urgência de uma completa reviravolta na política
econômica, a começar pela revogação da Lei de Responsabilidade Fiscal. A luta
contra o neoliberalismo colocará em questão a necessidade de a sociedade
brasileira concluir o seu longo processo do Brasil colônia de ontem para o
Brasil nação de amanhã.
O Brasil vive uma revolta popular séria que
pode se transformar no estopim de uma revolução democrática que abrirá novos
horizontes para o trabalhador brasileiro. É todo o edifício do capitalismo
dependente que começa a ser posto em questão, de baixo para cima, pela
intransigência da população em aceitar condições de vida subumanas. Na confusão
inerente a tempos turbulentos, todo cuidado com os pescadores de água turva é
pouco, mas uma coisa deve ficar clara para todos que lutam pela transformação social:
a luta de classes se polariza entre revolução e contrarrevolução.
* Plínio
de A. Sampaio Jr. é professor do Instituto de Economia da
UNICAMP e membro do Conselho Editorial do Correio da Cidadania – www.correiocidadania.com.br
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