Jair Pinheiro*
A campanha para o impeachment do ex-presidente Collor, em 1992, deu
ensejo a um movimento que se autodenominou “pela ética na política”. Não era a
primeira vez na história que o tema da corrupção pautava a agenda política, mas
talvez seja o período mais longevo do fenômeno, pois nesses últimos dezenove
anos a corrupção tornou-se tema central da pauta jornalística, das campanhas
eleitorais, do proselitismo partidário e das conversas de ponto de ônibus.
A partir de então, o tema tornou-se
o centro do debate político, gerando nos mais crédulos a convicção equivocada e
reducionista de que, controlada a corrupção, todo o resto estaria resolvido.
Entretanto, tal convicção sempre concorre com a percepção dos problemas
sociais, ou da gravidade deles, para a tomada de posição pelos indivíduos em
face das alternativas políticas que lhe são colocadas pelos partidos, pelos
movimentos sociais e pela mídia. Evidentemente, esses dois temas e as formas de
combiná-los têm pesos diferentes para os indivíduos conforme seu lugar e sua
posição de classe.
Para o cálculo político de
curto prazo (o que não exclui efeitos visados de longo prazo) das campanhas
eleitorais ou, como no presente momento, de reação ao crescimento das lutas
populares, o tema da corrupção apresenta algumas vantagens sobre o dos
problemas sociais, a saber: toca a todos, gerando um consenso espontâneo e
abstrato; seu conteúdo é de fácil assimilação; na aparência sua solução depende
de medidas simples de rigor investigativo e punitivo; mobiliza o sentimento de
indignação (supostamente contra os maus brasileiros) e o de ressentimento
(este, inconfesso, por certo) dos excluídos do butim e separa os bons dos maus,
ou seja, os patriotas dos impatriotas, como sugerem as imagens veiculadas à exaustão
pelos telejornais da última semana. Como a ideia de ordem orienta toda essa
construção ideológica, cria-se, assim, uma disposição subjetiva de apoio à
repressão dos que lutam por direitos, supostamente provocadores de desordem.
Por oposição, os problemas
sociais não tocam a todos, requerem a construção de consenso sobre o concreto
vivido; sua assimilação exige habilidade de interpretar informações; não
comportam soluções simples com resultados imediatos nem na aparência; seu
encaminhamento precisa mobilizar o sentimento de solidariedade e não separa os
indivíduos por critérios morais simples, mas por critérios materiais cujas
causas, se debatidas aberta e publicamente, tendem a revelar o que a luta
anticorrupção tende a ocultar: o mistério da insolúvel desigualdade social.
Como a ideia de direito orienta essa perspectiva, ela assusta àqueles cujos
privilégios seriam afetados caso as camadas populares conquistem mais direitos.
É este cálculo político de
curto prazo (evitar que a periferia ocupe a rua) e esta manobra ideológica
(substituir o debate público e aberto dos problemas pela mobilização da
indignação e do ressentimento), com vistas a restabelecer as condições de
dominação de longo prazo (a fé cega num sistema representativo que não pode
representar todos, a não ser como abstração), que explica a mudança de foco da
imprensa sobre as manifestações e a presença de pescadores em águas turvas a
partir do momento que aumentou a aprovação popular às manifestações e se
desmoralizou a ação repressiva da PM.
Se o exposto até aqui é
defensável, como penso que é, a corrupção é um privilégio espúrio, ou seja,
oposta a direitos, portanto, deve ser denunciada e combatida. Entretanto, a
luta anticorrupção como vem se dando é portadora de um enorme potencial obscurantista
na medida em que se insinua na retórica da mídia, dos partidos conservadores e
dos pescadores em águas turvas como alternativa à luta por direitos, pois temem
o potencial esclarecedor (iluminista) desta luta.
* Professor do Departamento de Ciências
Políticas e Econômicas da Unesp/Marília e pesquisador do NEILS – Núcleo de
Estudos de Ideologias e Lutas Sociais.
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