Jair Pinheiro*
As manifestações que vêm ocorrendo
em várias cidades brasileiras expressam o inusitado de encontros e desencontros
inesperados, o que, por sua vez, indica a existência de uma enorme e difusa
insatisfação que não encontrou a forma adequada nem o canal eficiente.
Explico-me. Começando pela ausência de canal eficiente, há uma clara
contradição entre o não reconhecimento dos políticos, partidos e demais
instituições políticas pelos manifestantes e o fato de que qualquer medida com
vistas a atendê-los se processa nessas instituições, que têm os repudiados
políticos como tomadores de decisão.
Duas conclusões emergem dessa
contradição. As manifestações expressam a percepção não elaborada de que a
democracia representativa é uma moldura demasiada estreita para integrar no seu
quadro institucional as demandas que lhe são dirigidas; entretanto, a recusa
dos manifestantes a pensar e criticar a política nos seus termos tende a
transformar a contradição em um vazio no qual se precipitam partidos despolitizados
com grande apelo eleitoral e/ou emocional e pouca ou nenhuma capacidade
organizativa que permita transformações efetivas, como dá exemplo o Movimento 5
Estrelas, na Itália, e o Partido X, na Espanha; ou o deslocamento do movimento
do campo do protesto para o da ação assistencial, como ocorre com o Occupy Wall
Street. Em todos esses casos, o sistema representativo, acertadamente
denunciado pelos movimentos como representante de apenas uma parte da
sociedade, continua funcionando intocado e a vida segue como antes.
Por outro lado, os partidos de
esquerda estão teoricamente desarmados para interpretar estes encontros e
desencontros e articulá-los a uma proposta de transformação crível para os
manifestantes. Enfatizo esta última frase, “crível para os manifestantes”, pois
é essa massa heterogênea que tende a se transformar em fiel da balança no jogo
político, podendo rumar para a esquerda ou para a direita, dependendo do motivo
(entre os muitos presentes entre os manifestantes) tomado para formular um
quadro geral de interpretação da conjuntura.
Quanto aos encontros inusitados,
cito dois. Um, setores democráticos radicalizados da classe média se
encontraram – não nas ruas, mas nos motivos de insatisfação – com trabalhadores
da periferia ao eleger como motivo de protesto o problema do transporte urbano.
Para os primeiros, o direito civil de ir e vir, para os segundos, o direito
social (certamente o direito civil também lhes toca) de dispor de condições
dignas de reprodução e de qualidade de vida, não é por outra razão que apesar
de todo apelo da mídia pela defesa da ordem, que quase sempre funciona como
arma ideológica de isolamento dos movimentos, desta vez não funcionou.
Dois, setores médios conservadores
se identificaram com os manifestantes no repúdio aos políticos e aos partidos,
emblematicamente vistos como corruptos. A corrupção é vista por esses setores
como a origem de todos os males, o que tende a deslocar a expectativa deles de
solução dos problemas sociais (normalmente entendida como restabelecimento da
ordem) para a ação dos aparelhos repressivos do Estado, com destaque para o
judiciário. Não por acaso, recentemente o atual presidente do STF foi alçado à
condição de herói nacional.
Nesses encontros e desencontros e
na exploração deles se encontram as possibilidades de desdobramentos de toda
essa movimentação. No primeiro, há a potencialidade de ampliação de luta por
direitos, o que requer uma interpretação materialista da produção capitalista da
cidade e a identificação das classes e frações de classes que podem se alinhar
na luta por outra cidade. No segundo, o potencial de retrocesso é grande e, por
isso mesmo, não pode ser menosprezado, pois a defesa da ordem a priori é oposta
à defesa de direitos na medida em que qualquer luta por direitos é questionadora
da ordem estabelecida.
* Professor do Depto. de
Ciências Políticas e Econômicas da UNESP/Marília e pesquisador do NEILS.
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