Os meses de março e abril de 2011 trouxeram dias desagradáveis para o governo do Estado da Bahia e os Reitores das Universidades públicas baianas e, em particular, da UESB. Nos dias 29 e 05, estudantes e professores, respectivamente, deflagraram uma greve cujos desdobramentos políticos surpreenderam a muitos, principalmente antigas lideranças sindicais acostumadas ao ritual das negociações no interior das salas governamentais.
As motivações para o movimento já vinham de algum tempo: o sucateamento crescente da educação pública, os ataques desferidos contra a autonomia universitária, a ausência de uma política de permanência estudantil. Todavia, o que o impulsionou foi a publicação do Decreto nº 12.583/11 ao impor várias medidas de contingenciamento aos serviços públicos no Estado e a maneira capciosa pela qual o governo do Estado pretendia conduzir a assinatura do acordo com os docentes, assegurando a incorporação de 70% da CET aos salários desde que a categoria não realizasse greve por um período de quatro anos (2011-2015). Estudantes e professores repudiaram a atitude autoritária e a irresponsabilidade do governo petista no tratamento da coisa pública e, por mais de dois meses, sustentaram uma greve que denunciou a permanência de uma política de destruição das Instituições públicas e as dificuldades para se fortalecer a luta mesmo diante de problemas tão gigantescos. A greve foi de extrema importância para o aprendizado político e a retomada da luta em defesa de melhores condições de trabalho e de ensino. Por isso mesmo, é preciso examinar algumas questões surgidas no decorrer do movimento de modo a dimensionarmos sua potencialidade e contradições.
1. O descenso dos movimentos estudantil e docente
A greve ocorreu em momento em que os movimentos estudantil e docente haviam passado por forte descenso. A sua retomada mostrou-se – e ainda mostra-se – difícil. A experiência acumulada pelos estudantes, quanto ao último período, não lhes era estimulante nem de envergadura suficiente para ampliar-se em número de militantes e em formulação política: mesmo instrumentos de representação institucional mais ampla inexistiam (o DCE há tempo estava vago e, com raríssimas exceções, os CA’s encontravam-se desestimulados, tendo ocorrido casos em que fora difícil articular chapa para concorrer às respectivas diretorias). Para muitos estudantes, a percepção é de que esse modelo de representação encontra-se superado e desmoralizado. O que se viu no decorrer do movimento foi o espírito de luta e avanço político de vários estudantes comprometidos em realizar mobilização independente de suas representações. Combateram fortemente a letargia acadêmica tendo a capacidade de articular propostas e enunciá-las, mesmo em situação adversa de um corpo estudantil cuja tradição recente fora, no âmbito político, ressoar propostas e aparelhismo de uma nova direita.
Os professores ressentiam-se, igualmente, de letargia: havia poucos dissidentes das diretrizes políticas de um grupo majoritário, o qual restringia a atuação ao âmbito negociador do sindicato e que convergia com a reprodução política dessa nova direita, mesmo quando esta submeteu-se, ainda mais, ao conciliábulo de experientes quadros sobreviventes do carlismo/ditadura.
O ambiente, assim, não era propício a um movimento mais afirmativo: o que restava da velha direita no movimento docente facilmente foi atraído e dissolvido em articulação e em aceitação de propostas formuladas por outro grupo, o majoritário, que, a passos rápidos, em situação subordinada, aninhou-se no poder, domesticou-se e hoje, em condomínio político, ajuda a gerenciar o Estado a serviço do capital.
Podia-se, legitimamente, antever que a greve anunciada seria aquela ultimamente tão conhecida: com data para começar, data para findar e pauta aceitável pelos governantes porque rebaixada, economicista, sem vontade alguma de alterar o mínimo. O ambiente não se apresentava favorável a paralisação de atividades acadêmicas e mobilização politicamente afirmativa.
2. A Surpresa
O que surpreendeu, no entanto, foi o fato de que, em ambiente contraposto à mobilização, os estudantes anteciparam-se à greve que prometia ser apenas reduzida articulação e negociação sindical. Apesar do ambiente geral de demorada desmobilização e infenso à luta, um número apreciável de estudantes conseguiu surpreender com suas assembléias, seus piquetes e sua deflagração de greve. A consciência da manipulação, que há muito torturava estudantes, a insatisfação quanto ao amesquinhamento de sua posição, a desconfiança diante do ensino oferecido, a falta de política de permanência estudantil, os custos pesados de estudar em escola pública sucateada, a indiferença de professores e gestores auxiliou a ainda tímida retomada de preocupação política e a mobilização. Os estudantes conseguiram, apesar do ambiente adverso, parar a Universidade antes mesmo do que era previsto pelo sindicato dos docentes e com nível de preocupação maior, inclusive quanto ao sentido do decreto contigenciador do governo.
3. O encontro
O movimento que motivou os estudantes também motivou grupo de professores, pelas mesmas questões e por terem projeto político divergente com o que vem ocorrendo no encaminhamento sindical, além de entenderem a universidade de modo diverso, diferenciando-se da direita tradicional e da nova direita. Mas, tal como ocorria (e ocorre) com os estudantes que comandaram a paralisação, não há unidade teórica e estratégica entre os professores que divergem da forma como está vegetando a universidade e da política colaboracionista do sindicato.
O encontro entre esses dois grupos (estudantes e professores que divergem do grupo majoritário) foi frutífero, inclusive porque, logo formularam o consenso não divergente de propósitos e que as reivindicações convergiam para o mínimo atendimento de que é necessário retomar a discussão de projeto de universidade e estancar a onda avassaladora da prática governamental que vem sucateando a universidade. Em síntese, esse foi o espírito dos atendimentos, mesmo com divergências pontuais.
4. Evidentes limitações
O quadro descrito implicava em claras limitações: força majoritária daqueles que viviam ou convergiram no e para o sindicato e demorado descenso dos movimentos discente e docente, não unidade dos grupos divergentes, referenciamento subordinado do sindicato aos grupos que partilham o governo. Mesmo quando a chibata foi acionada pessoalmente por integrantes “históricos” do grupo majoritário que, com unhas, dentes e cinismo, ocuparam o primeiro plano da repressão direta e/ou da ressonância desta, o que se viu foi a preocupação da nova direita em protegê-las.
O fato demonstrava as dificuldades dos sócios subordinados, dos condôminos minoritários, diante de gerentes e síndicos obsequiosos: como deveriam portar-se os sindicaleiros? – Rebaixando a pauta para deter a fúria dos amigos governantes fortemente incomodados com os molengos que permitiram a extrapolação do faz-de-conta em que se haviam tornado anteriores greves meia-boca. Mas também: impedir propostas que representassem qualquer avanço, desqualificar e esvaziar a Assembléia Universitária, hostilizar os estudantes.
5. Fúrias também se encontram
A fúria governamental (corte de salários, desqualificação dos órgãos colegiados, propaganda mentirosa, intervenção direta na universidade, proposta de perda de liberdade etc.), teve como contrapartida a fúria da nova direita acomodada, aí representada por sócios minoritários que esperam a mesma escalada de seus membros que ora compartilham a administração do Estado.
As fúrias se encontram, mas para ferir as mesmas pessoas. Ambas as fúrias opressoras que elegeram os adversários como inimigos e que buscaram uma negociação rebaixada – e insatisfatória – que terminou prevalecendo. Triste situação: lutar junto com amigos para abafar movimento necessário de retomada, de no mínimo, um clima de decência política na universidade. Mas, a fúria subordinada dos sindicaleiros faz antever o início de uma mudança na qual o papel de correia de transmissão dos partidos governantes no movimento universitário estará fortemente comprometido pela deslegitimização de suas lideranças face às futuras reivindicações.
6. Duplo movimento
Vê-se, no âmbito da greve, um duplo movimento: aquele do grupo que, como razão de ser, buscava a negociação e por isso desqualificava ações do grupo que tinha maior exigência, e aqueloutro representado por estudantes e professores divergentes que perseguiram a ampliação da greve, das mobilizações, seu referenciamento social e o repúdio ao decreto intervencionista na vida universitária. Não era possível unificar movimentos tão divergentes e mesmo a tentativa de alguns professores para a conciliação não apresentou nenhuma densidade para ampliar e substituir o profundo dissenso. Daí, a greve retomou o caminho desejado pela nova direita domesticada e alcançou aquilo que o governo perseguia: o controle direto da universidade, agora pela janela transversal da justificativa de acompanhar a aplicação do decreto contigenciador na universidade. Os furiosos agora sentar-se-ão na mesma mesa e planejarão a continuidade da destruição daquilo que resta da sempre imperfeita autonomia universitária e os ajustamentos necessários ao amortecimento de lutas dos indóceis estudantes e professores.
Um movimento cumpriu seu desiderato, porém à custa da deslegitimização de seus patrocinadores e de seu indiferenciamento diante de qualquer agrupamento da direita. Esse comprometimento poderá significar uma relação de força diferenciada na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, capaz mesmo de lançar em definitivo para os braços, um dos outros, professores que ficaram oscilando entre os dois grupos que mais dissentiram. Veja-se a situação de alguns professores que tentaram um meio conciliatório e aquele grupo que, de Jequié, participou da assembléia, mas sem qualquer viço e mesmo com a omissão diante dos maltratos aos estudantes.
O outro movimento, dos professores e estudantes que querem bem mais que negociação com pauta rebaixada, não conseguiu impedir o acerto entre sindicaleiros e síndicos do poder. No entanto, formou uma consciência crítica perante um número maior de estudantes e professores, cada vez mais desiludidos quanto as formas de mediação conciliadoras com o Estado, que tem o sindicato como interlocutor. Compreender o papel destes mediadores faz saltar a vista que a única luta possível é aquela na qual a base do movimento conduza os caminhos a serem seguidos. O movimento é embrionário, mas pode significar a refundação da participação mais ativa do que tem sido dos docentes e discentes na vida da universidade e do meio social mais amplo. Para esses, a tarefa é difícil: um lutar na contra corrente da mediocridade e dos conciliábulos, mas há uma vaga cuja pequena crista se vislumbra nesse difícil oceano de nossa história recente.
Vitória da Conquista, 26/08/2011
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