Dennis Oliveira* *
A abordagem que faço das relações
raciais no Brasil está fundada na concepção de que elas estão diretamente
imbricadas com a estrutura de poder socioeconômico. São os modos de produção e
as relações sociais deles derivadas que dão os contornos para a construção das
relações raciais. É evidente que a formação de ideologias que dão sustentação a
este modelo, disseminadas socialmente por instituições públicas e privadas – os
aparelhos ideológicos do Estado, como chama Althusser, ou os aparelhos privados
de hegemonia, do pensamento gramsciano – ganham autonomia relativa e vão se
mantendo mesmo em contextos em que, por pressões políticas dos movimentos
sociais, há a implementação de medidas institucionais de combate ao racismo e
ao preconceito racial. Mas a compreensão de fundo das relações étnicas passa,
necessariamente, pelo entendimento do contexto dos modos de produção e suas
singularidades históricas.
Conforme afirma o pensador Clóvis Moura,
o racismo brasileiro é produto da transição do sistema escravista para o
capitalismo dependente. O “branqueamento” da população implantado por meio de
políticas de exclusão dos afrodescendentes e incentivos à imigração tinha como
objetivo tanto consolidar a ideia da necessidade do país se submeter a lógica
do centro do capitalismo e não realizar uma “revolução burguesa” clássica no
país que apontasse para a consolidação de direitos de cidadania para todos,
romper com a ordem aristocrática e patrimonialista de outrora e,
principalmente, promover a inclusão social de forma que se construísse um
mercado consumidor interno capaz de alavancar um desenvolvimento interno
capitalista. Por isto, bandeiras que poderiam perfeitamente ser absorvidas em
uma ordem capitalista são tratadas como “subversivas”, como lutas por reajustes
salariais, reforma agrária, etc.
Este projeto de capitalismo tem como
consequência na ordem política a constante ruptura da ordem
democrática-liberal. Direitos humanos e direitos de cidadania são surrupiados
de forma intermitente e garantidos de forma seletiva de acordo com os
estamentos sociais consolidados. Os corpos de segurança pública obedecem a este
princípio – deixam de ser estruturas de proteção do cidadão para ser forças de
intimidação e dissuasão de comportamentos que contrariem, minimamente, a ordem e,
principalmente, a propriedade privada.
No final dos anos 1980, a Escola
Superior de Guerra, think tank das Forças Armadas e um dos principais centros
de produção da ideologia da “segurança nacional” que sustentou todo o aparelho
repressivo da ditadura militar, elaborou um documento intitulado “Estrutura do
Poder Nacional para o século XXI – 1990/2000, década vital para um Brasil
moderno e democrático”. Este documento tem mais de 200 páginas e aborda vários
assuntos importantes da política nacional, desde a manutenção da soberania
sobre a Amazônia e os problemas sociais no país. Com relação a este último, o
documento da ESG identifica dois focos de possível desestabilização social: os
cinturões de miséria e os “menores” abandonados.
O texto da ESG dá destaque a estes dois
problemas porque entende que há um crescimento exponencial das populações nos
cinturões de miséria e dos menores abandonados que, se não forem contidos de
imediato, poderiam constituir um grupo cujo efetivo poderia superar o dos
contingentes militares. Por isto, propõe que as Forças Armadas devem servir de
forças auxiliares para, na impossibilidade da contenção destes grupos por parte
das polícias militares, a pedido do Executivo, Legislativo e Judiciário,
“enfrentar esta horda de bandidos, neutralizá-los e destruí-los para que seja
mantida a lei e a ordem”.
Naquela década final do século passado,
consolidava-se na América Latina uma inflexão no modo de produção capitalista
global que ficou conhecido como neoliberalismo. Este modelo, sinteticamente,
altera a concepção de produção da larga escala para pequena escala e de consumo
de massa para nichos de mercado. A rentabilidade capitalista é obtida,
principalmente, pelo aumento extraordinário da produtividade do trabalhador
garantida pelas novas formas de organização produtiva e pela flexibilização da
jornada e da remuneração de trabalho. Com isto, há um desemprego estrutural,
pois o sistema produtivo se mantém com um número muito menor de trabalhadores.
A disputa pela vaga no mercado de trabalho se acirra ferozmente e o racismo
passa a ser um mecanismo de seleção importante. O desemprego estrutural faz
aumentar ainda mais os cinturões de miséria.
Ao mesmo tempo, a medida que este modelo
de produção capitalista aponta para nichos de mercado, cria-se uma situação de
uma população que é descartável para o trabalho e também para o consumo.
O projeto neoliberal também prega a
redução do Estado. As poucas e falhas políticas de atendimento social são ainda
mais diminuídas ante uma situação de ampliação gigantesca dos problemas
sociais. A combinação desta situação política com a produto da ordem econômica
cria a situação de uma “população excedente” que é descartável para o trabalho,
para o consumo e que pressiona por políticas públicas que estão sendo desmontadas.
A eliminação física destes grupos passa a ser um imperativo político para ser
mantido o sistema, daí a lógica do documento da ESG não mais para a ideologia
da segurança nacional da ditadura militar, mas sim para a manutenção do regime
capitalista neoliberal.
Observa-se, entretanto, que esta faxina
étnica dos anos 1990 tem uma pequena inflexão nos tempos atuais: com a mudança
de estratégia do Estado brasileiro, principalmente após a vitória do PT em
2002, o capitalismo por aqui vem tomando outros rumos. O projeto do governo
brasileiro, aproveitando-se da crise do neoliberalismo expressa nos grandes
centros (Europa e EUA), busca construir uma base capitalista local para atuar
como player global. A inspiração para tal modelo é a Coréia do Sul, isto é,
construir um grupo de grandes empresas brasileiras que passam atuar globalmente
aproveitando a abertura de novos mercados no eixo Sul feito pela mudança da
estratégia geopolítica brasileira. É graças a este projeto que se criou um
certo aquecimento da economia nacional e uma mudança na tendência ao desemprego
estrutural. O Estado brasileiro passa, então, a agir como um agente de promoção
global do capital nacional e o país muda sua estratégia perante a ordem global.
O que vai ocorrer, então, é uma transferência
para o território nacional de certas estratégias de reprodução do capital
contemporâneas. Duas novas fronteiras se abrem para a reprodução do capital – a
cultura e a cidade. Ambas se complementam. E o Brasil apresenta estas duas
possibilidades para o capital global, que ganham dimensão principalmente no
contexto de crise na Europa.
O espaço urbano da cidade é uma das
principais fronteiras de expansão do capital. Não só no sentido da construção
civil, mas principalmente na consolidação de um espaço urbano que facilitem as
ações do capital na produção e promoção de grandes eventos em que a
mercantilização cultural é a tônica. Este fenômeno já ocorrido em várias
cidades europeias é conhecido como “gentrificação” que pode ser sintetizado em
reformas urbanas profundas voltadas para a elitização de determinadas
localidades, tendo como consequência, a expulsão dos moradores tradicionais de
tais localidades.
Para tanto, o espaço urbano necessita
ser moldado de forma que tais ações possam ocorrer sem sobressaltos, sem
subterfúgios. As políticas públicas urbanas são realizadas para atender esta
demanda. Este processo se intensifica com a adaptação das grandes cidades
brasileiras para sediar eventos internacionais – Rio 92, Rio+20, Copa do Mundo,
Copa das Confederações, Jogos Olímpicos. Em torno da organização destes
megaeventos, se juntam grandes empresas nacionais e transnacionais cujos
negócios dependem diretamente destas ações do Poder Público.
Novamente, retornam aí os “focos” de
desestabilização identificados pela ESG no documento de 1988, porém agora não
mais no sentido de risco para a lei e a ordem apenas e tão somente, mas como
entraves para a ação do capital no espaço urbano. A “gentrificação” brasileira
não ocorre apenas e tão somente pela expulsão via a elitização e encarecimento
dos custos, mas há uma limpeza étnica operada pelas forças de segurança de
forma anterior às políticas de intervenção urbana, como uma “limpeza da área”.
Por isto, políticas meramente desenvolvimentistas elaboradas na atual lógica de
expansão do capital, apesar de proporcionar uma melhoria relativa no padrão de
vida dos trabalhadores, pode também dar sustentação a ações racistas e de
limpeza étnica. Daí que ao mesmo tempo em que se avançam nos direitos
normativos da população negra, como a aprovação da Lei 10639/03 e as cotas
raciais, há um aumento exponencial de assassinatos contra afrodescendentes,
sustentados ideologicamente pelo “combate à criminalidade”. Os territórios
periféricos são taxados como zonas do crime organizado que está em guerra com o
Estado. A lógica da guerra sustenta a ideia de suspensão dos direitos, de um
estado de “sítio” informal, daí o costumeiro desrespeito de direitos
elementares de cidadania por parte das tropas policiais que atuam como “forças
de ocupação”.
As operações policiais em favelas em São
Paulo obedecem a uma lógica de saturação e sitiar as comunidades, de forma a
conter, neutralizar e destruir, na mesma perspectiva que está presente no
documento da ESG.
*Intervenção feita no Seminário sobre
Faxina Étnica, organizado pelo Círculo Palmarino, no dia 15/12/2012, na sede do
movimento Consulta Popular em São Paulo.
** Jornalista e professor da USP.
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