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sexta-feira, 10 de junho de 2011

Balduíno e a greve: reflexões sobre o movimento estudantil


Marcos Aurélio Souza*
A Gal, estudante de Letras

            Um dos momentos mais emblemáticos e líricos da obra de Jorge Amado está nas últimas páginas de Jubiabá, romance publicado em 1935, quando o escritor baiano ainda contava 23 anos de idade. O personagem central, o jovem negro Balduíno, ingressa numa greve de estivadores que, juntamente com outros movimentos operários, paralisa a cidade de Salvador. Nenhuma outra cena literária pode representar melhor a força do movimento estudantil, no atual cenário de greve das universidades estaduais baianas.
            Uma das frases mais pungentes do romance, que mostra o significado de um movimento grevista, extrapolando seu mero sentido político social, é a que, para Balduíno: “Se não fosse a greve, o mar engoliria o seu corpo numa noite em que a lua não brilhasse”.  Na adolescência, antes de perceber a importância de uma greve, Balduíno fez muita coisa na vida: foi menor abandonado nas ruas soteropolitanas, artista de circo em Feira de Santana, pugilista e trabalhador rural nas roças de fumo do recôncavo baiano. Sua história poderia ser a de qualquer pessoa, muito pobre e negra, de nossos tempos, enfrentando as possibilidades de subemprego ou de “escravidão proletária”, para utilizar um termo do romance de Jorge Amado. 
            O que aproxima Balduíno da juventude grevista das universidades estaduais, a mesma que gritava, na Sete de Setembro e na região do Iguatemi, alguns dias atrás, “o professor é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo”, ou que estava, juntamente com professores, acampada na ALBA (Assembleia Legislativa da Bahia), não é apenas a mera assunção de uma luta social, movida por questões trabalhistas, digamos assim. É a capacidade de agregar lutas, lutar por qualquer coisa válida a qualquer hora, e saber fazer isso com disposição e criatividade. Balduíno, consciente ou inconscientemente, sabia que, no final das contas, estava em jogo não apenas a opressão dos patrões sobre seus empregados, numa fácil equação marxista, mas uma estrutura opressora maior e microestrutural, que envolvia também o racismo do qual era vítima – bem explicado pelo velho Jubiabá – e a precária condição feminina, representada pela morte de sua Lindinalva, roída pela bexiga, num prostíbulo da capital.
            Sorridentes (diferentes de alguns grevistas sisudos do século XX) com o colorido encantador de suas roupas, num desbunde formidável e provocativo, a juventude que estava nas ruas de Salvador, é a mesma juventude expressa pelo personagem de Antônio Balduíno. Ela sabe que lutas se travam também no campo simbólico, por isso utiliza máscaras, abusa dos desenhos, canta versos, reinventa letras de músicas conhecidas. É capaz ainda, nessa economia do prazer e da performance, de celebrar “religiosamente” um prédio de laboratórios, abandonado há oito anos pelo estado, perceber e ironizar o que está por trás de uma declaração, no corpo fantasiado de paletó e seriedade do reitor. Não tolera meias palavras, mordaças ideológicas, olhos que não fitam o rosto do interlocutor, escondendo verdades. Sai nas ruas de Jequié, Salvador, Feira, Juazeiro, etc celebra a vida, porque afinal, mesmo em condições desfavoráveis, vale a pena vivê-la plenamente. Promove “beijaço”, diante da Assembleia Legislativa da Bahia, em resposta à reprimenda infeliz de um segurança a duas jovens manifestantes, só porque trocavam ósculos carinhosos.
            Todos os movimentos sociais precisam de(essa) juventude. De um estado de espírito, não apenas da pouca idade, mas de uma vontade de se colocar, de se impor pela inteligência e, sobretudo, pela coragem. Muita gente deve ter estranhado a juventude dos professores das universidades estaduais, ao ver muitas fotos das nossas manifestações, estampadas nos jornais: uma garota de óculos, um rapaz alto com um black, outro de óculos escuros fashion, uma menina de tiara com uma faixa, exigindo infraestrutura para o curso de odontologia. Não, não eram professores, pelo menos em sua grande parte, era a juventude estudantil, carregando as bandeiras do movimento, no front de nossa greve.
            Por isso, o mínimo da decência exige que os professores carreguem também bandeiras do movimento estudantil, como está acontecendo, as quais aliás não são apenas dele: temos que ser capazes sempre, assim como os estudantes, de perceber que está tudo relacionado. Os golpes contra a educação no estado da Bahia acertam todo o corpo social e político da grande população desse estado, não apenas os braços ou a cabeça, não apenas as pernas ou os olhos.
            A lei 12.583 é contra todos, a cláusula que congela nossos salários é contra os estudantes, e a falta de uma política séria para assistência e permanência estudantil é contra o professor também. Não abandonaremos a greve apenas pelo aumento de salário (embora isso seja importante), enquanto tivermos essa percepção jovem, atualizada, de que qualquer reivindicação social séria, nos dias de hoje, carrega a reboque movimentos reprimidos, num efeito dominó, operando a favor de  demandas historicamente relegadas, não atendidas pelo estado da Bahia.
            A greve está tendo uma importante força dessa “juventude balduína”, por isso que ela é tão forte. A cidade de Salvador já foi palco de uma força semelhante, e simplesmente parou (como na greve protagonizada por Balduíno), quando estudantes do ensino médio ocuparam as principais ruas dessa cidade, por vários dias, em 2003, forçando a redução do preço das passagens de ônibus, a conhecida “revolta do buzu”.  Essa força jovem se fez ativa, de forma bastante diferente, na produção de um movimento paralelo, via internet, um apoio potencializado e fundamental da greve universitária, nos twitter, orkut, facebook, youtube, blogs etc., construído, principalmente, pelos estudantes. Esse apoio desnorteia qualquer política mal intencionada, pois se alastra incontrolavelmente, adquirindo novos simpatizantes além das fronteiras regionais e nacionais.
            Há uma importância dupla do nosso movimento, graças aos estudantes das universidades estaduais. Ele é alimentado e fortalecido por essa juventude, ao mesmo tempo em que potencializa a juventude que está em nós, recupera um sentido de corpo e de coletividade, construindo uma greve que é mais do que uma pauta de reivindicações. Um sentido, movido pela paixão por justiça, pela necessidade utópica de salvar o mundo, e, ao mesmo tempo, ser salvo por ele. Foi esse o sentido descoberto por Balduíno, no final do romance de Jorge Amado. “Com a greve ele enxergara outra estrada e voltara a lutar” ... “A greve o salvou.”.
*Professor Adjunto da UESB, Doutor em Literatura e Cultura pela UFBA

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