Um mergulho no abismo

Braulino Pereira de Santana*

A manhã com um sol tímido, que se abriria mais tarde na sua imensidão que traga a Terra por completo. O vazio, a repetição, a constante que se arrasta – há dias em que muita gente não encontra uma alma nem para odiar. Hoje amanheceu como sempre, mas uma manchete expunha a tara de quem escreve pela classe ociosa nesses jornais. Jornalista é uma profissão vagabunda e desnecessária. Vai-se vender e se anular como ser humano. Quem escreve para esses órgãos de imprensa deixa de ser a si mesmos e passa a escrever para a ‘linha editorial’. Vai dizer o que o patrão mandar para poder pagar as contas – prefiro morrer de fome. Deixa de ser um ser humano e passa a ser uma função: “Professores das estaduais fazem mais exigências”.

Jogada num canto esquerdo da página inicial do jornal ‘A Tarde’, a frase mobilizou uma fúria, vontade de dar um murro na cara de quem se presta a escrever uma coisa dessas! Toda e qualquer exigência que professor faça sempre vai ser mínima, vai ser pouca, vai ser como o sol tímido numa manhã de horizonte com névoas. Intelectuais paralisam as suas atividades para demonstrar para a sociedade que, sem condições de trabalho mínimas e decentes, quem perde é a própria sociedade.

A manchete de jornal é o pressuposto da promiscuidade entre poderes públicos e interesses de grupos privados. A tática é canalizar dinheiro público, que proporcione vida boa, para os donos desses órgãos de imprensa em troca de suas vozes cupinchas.

A mobilização desses jornais por desqualificar movimentos sociais como o de professores na Bahia não funciona como costumava funcionar na era pré internet. Esses jornais e essas redes de TV, que não passam de braço armado ideológico de qualquer grupo de políticos que solapam o poder, estão perdendo, passo a passo, suas hegemonias cretinas. Ninguém mais aceita com impotência o jogo sujo que reina há décadas, comandado por eles.

Quando os estudantes de Salvador foram às ruas, tempos desses atrás, protestando contra o aumento das passagens de ônibus, todas as entradas no ar de um certo Casemiro na rede de televisão do carlismo começavam com: “A polícia está de prontidão para isso ou para aquilo”, “Policiais estão a postos para impedir o vandalismo dos estudantes”, e outras indecências brutas. Se não houver a possibilidade e o direito de que as reivindicações sejam feitas na base da política, corre-se o risco de que elas sejam administradas aos moldes das Farc’s colombianas, pois ninguém aguenta mais tantas ignomínias, tantas injustiças.

A ideologia para desqualificar a greve dos professores dessa vez não tem surtido muito efeito. O jornal ‘A Tarde’ tenta, a todo custo, com suas estratégias rasteiras de contra informação, fazer crer que o governo Wagner atendeu as demandas, e fazer crer que os professores e os alunos em greve estão ultrapassando os limites do bom senso em suas reivindicações. Jornalistas compõem as tropas de choque de paus-mandados!

Até agora o governo Wagner não acenou com nenhuma possibilidade de consertar os danos que vem impondo às universidades estaduais, e, por isso mesmo, assembleias de professores em três universidades estaduais ontem decidiram por manter o movimento grevista ativo. Não será tão certo assim para a classe ociosa impor as suas pautas como antes, como aconteceu com a primeira greve sob égide do governo Wagner.

A escrotidão desse governador ao suspender os salários dos professores aprofunda a miséria de cidades do interior, como Jequié, Conceição do Coité, e tantas outras, cuja renda dos professores movimenta a vida econômica por ali. Pressuposto? Ele está pouco se lixando para pobres e desassistidos.

Ele costuma lidar com movimentos grevistas à base do pragmatismo patrão X empregado. Ora, as universidades estaduais são patrimônios públicos do povo da Bahia, e ele é um gestor temporário da coisa toda, não é patrão de professor. A atitude é sempre de desrespeito, de desdém, como se fôssemos uma horda de fracassados reivindicando misérias. Deveria logo ter assumido ele mesmo negociações e ouvir as vozes do movimento grevista, afinal, não está em jogo apenas o futuro salarial de professores, está em jogo o destino de pesquisas, a ampliação de vagas, a feitura de laboratórios que funcionem, o próprio sentido de uma universidade pública. Sejamos honestos: não existem universidades públicas na Bahia – o que vemos é um arrazoado de cursos que funcionam precariamente em prédios sem infra-estrutura mínima, servindo para que a propaganda do governo arrote na televisão que mantém universidades públicas na Bahia.

Todo grupo político que assume os postos de poder na Bahia pregam nas campanhas a ideologia da justiça social aos moldes do filósofo John Rawls, mas se impõe comprando o trabalho dos jornalistas paus-mandados de jornais como o “A Tarde” e de redes de televisão como a “TV Bahia” com suas estratégias de censura democrática ou de censura aberta mesmo, mas as suas reais fontes de manutenção de privilégios advêm de premissas caducas retiradas das páginas de o “Leviathan”, de Thomas Hobbes: “Todo poder só pode fundar-se na submissão”. Os professores e os alunos das universidades estaduais têm demonstrado que a submissão não será assim tão fácil de ser obtida como o foi na greve do primeiro mandato do governador de olhos azuis.

Ele está percebendo que precisa mudar suas estratégias carlistas para lidar com os movimentos sociais na Bahia, afinal, aqui ninguém vai permitir que o patrimônio público, como as universidades baianas, seja abandonado e tratado com impudor para que ele invista o dinheiro dos impostos e da renda dos baianos em seus compadrios beneficiando a iniciativa privada. Todo professor deveria ter a decência de cancelar suas assinaturas do jornal ‘A Tarde’ – se é que alguém ainda assina uma coisa dessas – ou parar de comprar esse lixo e se associar às redes com suas alianças à margem desse tipo de imprensa de classe ociosa. A ousadia que os baianos deram a esse estrangeiro, elegendo-o ainda no primeiro turno para governador, será lembrada como um passo em falso, um mergulho no abismo.

*Braulino Pereira de Santana é professor da UESB de Jequié. Administra o blog “A Raposa Felpuda” (www.bp.santana.zip.net)